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Crítica | Casanova de Fellini

por Luiz Santiago
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Após explorar a sexualidade pagã e caótica da Roma Imperial em Satyricon; olhar para esta mesma cidade como um diretor de cinema que capta sua História e seu cotidiano contemporâneo “atormentado” pelo passado, em Roma; e por fim, trazer à tona as memórias da infância de toda uma Itália no delicioso Amarcord, o mestre de Rimini empreendeu uma aventura quase às cegas pelo mundo libidinoso de Casanova, realizando um filme que tinha tudo para ser tão ruim quanto Satyricon, mas que conseguiu um lugar dentre os mais notáveis, icônicos, tristes e patéticos (no melhor sentido dramático da palavra) filmes do diretor.

Casanova de Fellini (1976) é uma aventura através da solidão de um homem e da superficialidade de uma Europa barroca. Mesmo transitando por lugares onde encontra festas, música e sexo, Giacomo Casanova não está feliz, não se sente completo e não quer ser visto apenas pelo seu apetite sexual e seus lendários prodígios nessa área, mas também pelas suas invenções, seus escritos, sua filosofia. Federico Fellini imprime nesse personagem um duplo e recorrente desejo: o preenchimento de seu vazio através do sexo e a vontade de ser reconhecido e aceito como um erudito.

Já neste ponto temos um elemento que faz com que Casanova seja um filme que nunca envelhece: a luta constante de muitos indivíduos para tornarem pública uma imagem distinta daquela que lhe deu fama. Não que deixem de cultivar e viver dos louros dessa primeira imagem, mas ela é sempre reducionista e, conforme a velhice chega e novas pessoas e lugares se adicionam ao seu círculo social, torna-se necessário se mostrar capaz de fazer qualquer outra coisa. O caminho da angústia então se escancara: na ânsia de querer satisfazer-se e satisfazer aos outros, Casanova (o protagonista do filme de Fellini e as pessoas que lhe são espelho) acaba deixando tudo incompleto pelo caminho, acumulando fama pelo que não quer e muitos inimigos em decorrência dela.

O filme se inicia com uma espécie de Carnaval onde a cabeça de Vênus se ergue pela metade de uma lagoa. Uma tragédia impede que ela venha completamente à tona. Esse mesmo cenário trágico e falho dará lugar à solidão e patetismo quase insano no qual Casanova se encontra ao final do filme. A mesma lagoa agora está congelada. Ele dança com uma boneca, a carruagem de ouro do Papa atravessa seu caminho, mulheres aparecem e se desvanecem como memórias da velhice. O único desejo do protagonista permanece e é atendido, ao final, por um ser inanimado em um sonho que é um retrato tardio de sua vida.

Fellini dirige Casanova como se estivesse dirigindo uma ópera. Seu escrúpulo estético e a saga do protagonista poderiam, guardadas as devidas proporções, ser comparada à de Barry Lyndon (1975), só que com altas doses de elementos oníricos, metáforas visuais e surrealismo. Tudo em Casanova é misto de pompa e podridão. Observe que o Carnaval inicial é bruscamente afetado pela quebra da viga, impedindo que a cabeça de Vênus seja erguida. A avaliação final da primeira performance sexual de Casanova não é cem por cento e ainda recebe um toque de idiotice psicológica, quando o personagem tenta convencer o Conde de suas qualidades intelectuais. Sua saída da ilha culmina em sua prisão e, assim, temos o filme inteiro. Toda vitória, todo orgasmo, todo riso do filme são acompanhados pelo seu oposto, que mais cedo ou mais tarde empurrará Casanova para outra cidade ou o fará ser humilhado e rejeitado, até encontrar-se velho e só, na companhia imaginária de uma boneca que crê amar imensamente.

Nino Rota compõe aqui a sua última trilha para um filme de Fellini. O músico faleceu em abril de 1979, um ano antes do diretor lançar seu novo projeto, Cidade das Mulheres. Essa questão musical é interessante, porque Casanova é um dos filmes que mais destacam a música do compositor em todas as suas variações, do operístico ao folclórico. Diversos outros filmes de Fellini apresentaram partitura parecida, mas levando em consideração o tempo da música em execução e sua variedade, temos em Casanova um novo momento do diretor (que, na minha opinião, perseguiria esse momento em três de seus longas vindouros: Ensaio de Orquestra, E La Nave Va e Ginger e Fred). Nino Rota apresenta uma trilha diferente das anteriores, uma música que em certos momentos lembra características minimalistas, depois trabalha com trechos atonais, profusão de tons menores e muita melancolia. Todas essas características se tornam ainda mais evidentes quando algumas frases orquestrais nos lembram os temas circenses que ele compusera para Fellini em obras anteriores.

Casanova de Fellini não é um filme apreciado por todos e não foi muito bem recebido pela massa crítica no momento de seu lançamento, contudo, está entre os mais lancinantes do diretor, uma obra que estende a angústia e uma certa perturbação até os limites máximos do protagonista, como também acontecera em Toby Dammit (1968). A diferença é que aqui os demônios e os desejos são outros, muito mais próximos dos ardores mais comuns que fazem muita gente enlouquecer, se isolar e morrer sozinho. Um retrato da decadência e da solidão em meio à fama e à multidão.

  • Crítica originalmente publicada em 21 de janeiro de 2014. Revisada para republicação em 18/05/2020, como parte da versão definitiva do Especial Federico Fellini aqui no Plano Crítico.

Casanova de Fellini (Il Casanova di Federico Fellini, Itália/EUA, 1976)
Direção: Federico Fellini
Roteiro: Federico Fellini, Bernardino Zapponi (baseado na obra de Giacomo Casanova)
Elenco: Donald Sutherland, Tina Aumont, Cicely Browne, Carmen Scarpitta, Clara Algranti, Daniela Gatti, Margareth Clémenti, Mario Cencelli, Olimpia Carlisi, Silvana Fusacchia
Duração: 155 min.

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