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Crítica | Casos Célebres do Juiz Dee, Traduzido Por Robert van Gulik

por Luiz Santiago
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Robert van Gulik foi um orientalista, escritor e diplomata holandês que ficou mundialmente conhecido pela sua tradução dos “casos criminais resolvidos pelo juiz Dee“, uma das muitas ficções policiais chinesas envolvendo magistrados. Infelizmente não se conhece o autor original da obra, que para concebê-la, tomou como base a vida de Di Renjie (630 – 700), um oficial do governo que ocupou diversos cargos militares, executivos e legislativos durante a vida. Das muitas histórias originais do juiz Dee encontradas por van Gulik em uma velha livraria de Tóquio, três principais foram traduzidas para o inglês e publicadas em 1949, alcançando um enorme sucesso — tanto que o tradutor criaria a sua própria série policial com aventuras inéditas do juiz Dee.

Consta que as cópias e o manuscrito do século 19 que van Gulik adquiriu tinham ao todo 65 capítulos, dividindo em duas partes as tramas do juiz: a primeira, com 31 capítulos, mostrava o personagem investigando crimes à medida que também cuidava do processo judicial (por que choras, Perry Mason?). A segunda, com 34 capítulos, tratava de intrigas judiciais e vida na corte, sem nenhum crime sendo investigado. No excelente artigo que escreveu ao final da presente edição, o tradutor comenta o por que escolheu verter apenas a primeira parte, com três casos que Dee investiga e julga ao mesmo tempo (grifo para este “ao mesmo tempo“, já que normalmente as histórias policiais lidam com um grande crime por vez, embora existam gratas exceções). O livro então se estrutura como um “romance gerado a partir de três contos“, costurados para fazerem parte de um mesmo momento na vida do protagonista. Essas histórias são: Duplo Assassinato ao AmanhecerO Estranho CadáverA Noiva Envenenada. O tradutor comenta que a segunda parte da obra parecia ter sido adicionada muito depois da original, pois havia grande queda na qualidade da escrita, mudança de abordagem para o juiz e um número absurdo de repetições, passagens sexuais baratas e bobagens cotidianas na construção do texto.

Seja como for, a tradução dos casos policiais do juiz Dee acabou conseguindo o seu objetivo de apresentar a literatura policial chinesa para o Ocidente. Muito antes de Poe pensar nos seus Assassinatos na Rua Morgue, já havia no Oriente um procedimento literário desse mesmo gênero (bem antes da China, na verdade, se considerarmos a narrativa árabe d’As Três Maçãs como um whodunit; ou ainda bem mais no passado, se notarmos Édipo Rei como o legítimo precursor da literatura policial) e, guardadas as particularidades da literatura chinesa, com a mesma essência. O já citado artigo de van Gulik nos esclarece pontos que, se não tivessem o devido contexto, poderiam servir para nos afastar da obra. E é por esse motivo que acho necessário conversarmos um pouquinho sobre esses pontos e seu contexto histórico e literário.

Há registros de ficção Gong’an na China (ou seja, as histórias sobre crimes investigados/julgados/resolvidos por magistrados — Dee e Bao são os mais famosos) desde a Dinastia Song (séculos 10 a 13), mas foi mesmo durante a Dinastia Yuan (séculos 13 e 14) que ela ganhou corpo, não permanecendo apenas na oralidade, nas crônicas, na poesia ou canções populares, mas indo para os contos, peças e os romances. É desse período uma icônica peça-ópera (zaju) chamada O Círculo de Giz, escrita por Li Qianfu. Trata-se de uma das mais antigas e celebradas histórias do juiz Bao, um documento muito importante que marca bem o gênero em suas primeiras impactantes representações para o grande público.

Nas primeiras décadas da Dinastia Qing (séculos 17 a 20), as narrativas Gong’an foram progressivamente perdendo força, ressurgindo aos poucos na segunda metade dessa Era, com um caráter político mais forte e aliado às tramas de heróis [das artes] marciais, as wuxia. É desse momento que vem a obra que agora estamos criticando, e foi em contato com as produções desse período que van Gulik criou uma espécie de raio x que explicitasse os elementos recorrentes nesse tipo de literatura. Vale reproduzi-lo aqui:

  • Grande número de personagens em cena.
  • Muitas passagens filosóficas, descrição de documentos oficiais ou versos.
  • O processo de resolução do caso sempre envolve uma intervenção de forças sobrenaturais.
  • Os criminosos, seus motivos e histórias pessoais são explicados desde o início, sem suspense.
  • Há descrição detalhada de como os criminosos são punidos e do que acontece com eles depois da punição.

Todos esses elementos podem ser vistos nas três histórias costuradas desses Casos Célebres, passando de um duplo assassinato entre mercadores viajantes, indo para um envenenamento fatal de uma noiva em sua noite de núpcias e chegando a um assassinato não resolvido em uma pequena cidade sob a jurisdição do juiz Dee. Cada um desses crimes possui os seus detalhes sanguinolentos (a narração de como um dos corpos é esquartejado, após a declaração de sua sentença, é ao mesmo tempo terrível e fascinante) e o juiz Dee adota um modo diferente de agir sobre a problema. Ele se disfarça de médico, de vendedor de lã, vai a uma casa de banhos e até puxa longas conversas com os habitantes locais, o que garante boas risadas — a sequência com o velhinho surdo me fez gargalhar com vontade.

De todas essas histórias, a protagonizada por uma mulher acusada de ter matado o marido é a minha favorita e definitivamente a melhor do volume. Ela é a segunda a aparecer no enredo e surge por acaso, enquanto o juiz investiga um duplo assassinato. A força de vontade dessa mulher, sua resistência às torturas e a grande quantidade de detalhes e reveses que Dee encontra nesse caso faz dele o mais difícil da tríade e aquele que quase leva o protagonista à morte. Segundo a lei da época, se um juiz torturasse uma pessoa e ela fosse provada inocente, tal magistrado e seus auxiliares seriam mortos. A propósito, vale dizer que a tortura, embora não fosse um procedimento legal, era plenamente utilizada pelos juízes chineses do período, porque segundo a lei, uma pessoa só era realmente culpada se ela confessasse o seu crime… daí o uso da tortura para que a confissão viesse logo.

Apesar dos exageros e das entradas sobrenaturais que auxiliam a resolução do crime (sonhos, ventos mágicos, espírito do morto, etc.), o que temos em Célebres Casos do Juiz Dee é uma deliciosa narrativa policial que não deve nada àquelas que a tradição Ocidental oficializaria como gênero no século 19. Evidente que cada leitor irá gostar mais ou menos de alguns elementos aqui — o ponto sobrenatural é normalmente o mais rejeitado pelos leitores desse lado do globo — mas eu simplesmente me deleitei durante esse processo de caça aos assassinos. Aqui, seguimos os passos de um indivíduo que tem amplos poderes para exercer o seu cargo em nome da justiça, e que o faz com extremo zelo e honestidade (vale notar que os costumes aqui representados, sejam reais ou fictícios, devem ser acatados à luz daquela sociedade do século 18), culminando com a sua promoção a um cargo maior e também num charmoso encerramento cíclico, com o juiz Dee assinando papéis no mesmo lugar que o encontramos na página inicial do volume. Um maravilhoso exemplar da “literatura policial chinesa” no século 18, que infelizmente não é tão conhecido quanto deveria.

Casos Célebres do Juiz Dee (Dí Gōng Àn / Dee Goong An / 狄公案) — China, anos 1700 (século XVIII)
Autor: Anônimo
Tradução: Robert van Gulik (1949)
302 páginas

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