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Crítica | Castelo de Areia (2010)

por Davi Lima
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castelo

Muito da experiência com o tempo nos tempos atuais envolve impaciência, pressa e ansiedade. Esse é o senso comum, sensações abstratas que parecem cada vez mais intensas no século XXI tecnológico, digital e global, mesmo que o tempo de 24h de um dia seja o conceito democrático sempre a ser lembrado para organização. Esse é o centro de incômodo qualitativo, efeito da leitura da Graphic Novel Castelo de Areia, porque apesar de visualmente e narrativamente a concretude do envelhecimento seja o tema central da história em uma praia doméstica, há na simplicidade da construção estrutural das páginas e das cisões dramáticas que preservam o tempo abstrato quanto ao espaço do que se lê nos quadrinhos. E é nisso que consiste uma boa mediação empática com o leitor para o desespero do tempo se concretizando em efeito sobre os personagens, quando o senso comum não é mais uma impressão, é de fato expressão.

Compreendendo que as histórias em quadrinhos como nona arte tem suas características únicas para a maneira de contar sua história, é importante esmiuçar alguns detalhes interpretativos de como a história escrita pelo diretor e documentarista Pierre Oscar Lévy se relaciona com o traço grosso de Frederik Peeters e a diagramação aparentemente invisível de Castelo de Areia. Começando pela diagramação até a história, as vinhetas, ou os quadrinhos de forma quadrática ou retangular visto nas páginas dessa Graphic Novel são pouco notados, em que até a separação entre eles parece feito à mão, com riscos leves do fechamento do quadro, assim como as proporções mudam muito pouco, em que as variações da ausência de um quadrinho para uma cena contínua de movimento, ou um plano mais aberto e um super close up, são extremamente pontuais. Nisso, há uma certa simplicidade quanto a cinética dos acontecimentos, já que não há inventividades na diagramação, com um número padrão de e formas proporcionais em quase toda página. Somado a isso, pensando na ilustração de Peeters com traços grossos, é o desenho realista de rugas, aumento epitelial e crescimento da penumbra no decorrer do tempo do dia para a noite que vai sucumbir qualquer contexto estático aparente da diagramação. Até mesmo os ângulos variados dentro da mesma proporção de tamanho de um quadrinho emerge progressão narrativa e do tempo.

Agora centrando na história de duas famílias, primeiramente, numa praia entre relevos acentuados, já com uma aparência de isolamento desde da primeira página, que mostra um movimento onisciente da observação aérea de uma praia até chegar num ambiente mais doméstico ao passar por dentro d’água (como um movimento de câmera no cinema que movimento o que o espectador vai enxergar e onde vai assistir a trama); Pierre Oscar Lévy tem um prato cheio, pela diagramação e a ilustração descrita, para trabalhar a temática do tempo entre o abstrato e o concreto. O concreto é o medo, é o susto, são as mudanças abruptas e as percepções a cada quadro igual seguido de outro, enquanto o tempo abstrato se conserva, o senso comum e a mais ordinária percepção do tempo é a base inicial para que qualquer concretude do traço de Peeters traga efeito dramático. Assim, quando as crianças de 3 anos ou 5 crescem, tem estirões sobrenaturais, é de repente entre duas páginas, e quando um órgão sexual aparece na história é sempre com um close up que dita um tempo para a concretude da puberdade. A boniteza do texto de Lévy é nunca abandonar a naturalidade em meio a abstração do tempo se concretizando em velhice. Pois existe o tema em progressão dramática, como os personagens vão se relacionar com o conflito com a aceleração do tempo que vai se empilhando, assim como a base ordinária realista de pessoas que tentam compreender as impressões temporais com o senso comum que tenta normalizar a sensação concreta do tempo.

Porque, afinal, a concretude e a impressão abstrata do tempo por vezes se diferenciam pela diferença de espaço. A tal frase para a criança dizendo “quanto ela cresceu” demonstra a falta de convivência contínua, em que um parente não mora com essa determinada criança e a visita une o abstrato tempo do parente com a concretude de que a criança envelhece dentro do mesmo período para os dois familiares. A função sociológica e intrigante de ler Castelo de Areia é ver esse efeito simultâneo, abrupto. Quando duas crianças das duas famílias na praia crescem e a menina olha o pênis do garoto, em poucos quadros eles já são o Adão e Eva distante dos pais se tocando em uma outra parte da praia. Soa repentino, até antinatural na compreensão de comportamentos humanos, mas na verdade a aceleração do tempo no que se escolhe montar no quadrinho, dentro da diagramação detalhada, provoca a aceleração fora da leitura das reações dos personagens e traz para o leitor na compreensão dos eventos.

Assim, a narrativa parece truncada constantemente, em que de um quadro para o outro não há preparação, e esse sentimento de erro, como se a cinética da Graphic Novel estivesse desordenada, na verdade concretiza a pressa desesperante de se envelhecer para os personagens. Mas fora essas duas camadas, a da impressão do leitor e o que os personagens passam, há o conceito da concretização, ou a metáfora do empilhamento progressivo de dramas com a situação da praia amaldiçoada que vai construindo o tal castelo de areia. Se o abstrato tempo e as impressões se tornam concretas, Lévy torna o realismo em fábula, como se a imersão moral completa da mensagem de Castelo de Areia precisasse de um Alzheimer literário que fundamenta um passado para continuar vivendo no presente, mesmo que dolorosamente, em vista que a mente não acompanha o envelhecimento acelerado corpo. Por um lado o castelo de areia construído pelo personagem xenofóbico, o conto do rei preso em seu túmulo de proteção contra a morte contado pelo personagem argelino e a torre feita por balde de areia se completam no conceito democrático da impressão temporal errática que a história evidencia para os seres humanos, mas também fragiliza o realismo ordinário raiz que empilha o castelo do ato final.

 

Por fim, Lévy aposta numa certa poetização do tempo, algo muito circunstancial no aparecimento de metáforas para conclusões. O minimalismo de Peeters com seu traço grosso na ilustração preto e branco provoca a “desambientação” tranquila, e a moral de fábula de Lévy soa como uma maré que derruba o castelinho de areia. Mas ainda assim, mesmo nessa compreensão de antítese da finalização com a linguagem narrativa da obra, Castelo de Areia é uma das poucas obras que debocha dos escritores de ficção científica para dizer que há muito mistério no tempo sensitivo e tão variado na mesma escala de 24h para todos. Talvez a principal viagem no tempo seja a mais ordinária olhada num álbum de fotos de família que provoca a imprevisibilidade emocional, entre a impressão do presente e a expressão do passado sobre ele.

Castelo de Areia (Château de Sable) – 2010, França
Roteiro: Pierre Oscar Lévy
Arte: Frederik Peeters
Editora: Atrabile
104 páginas

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