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Crítica | Os Cavalos de Fogo (Sombras dos Ancestrais Esquecidos)

por Luiz Santiago
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A obra do cineasta georgiano Sergei Paradjanov é um belíssimo enigma. Seus filmes, embebidos nas tradições de seu país, são profundas reflexões sobre a essência da vida humana, os relacionamentos e o amor a tudo aquilo que nos faz bem, começando pela terra que nos cede alimento e “nos deu origem”, até os nossos entes queridos e amigos. Seu universo pessoal é místico e há lugar para rituais religiosos e de feitiçaria, memória e as muitas possibilidades da micro-história, aquela parte mínima dos acontecimentos fora dos heroísmos, mas não menos importantes para os que beneficia ou arruína. Dois mundos são trabalhados nos filmes de Paradjanov, mas não vemos separação alguma entre eles. O cotidiano está enraizado no mundo espiritual e, embora façamos diferença entre ambos, eles se complementam e afetam a cada um de forma diferente.

Sombras dos Ancestrais Esquecidos (também chamado Cavalos de Fogo, 1964) é uma das obras-primas incontestáveis de Paradjanov, ao lado dos grandiosos A Cor da Romã (1968) e A Lenda da Fortaleza Suram (1984), filme dedicado aos soldados georgianos mortos em combate. Mas em um caminho diferente, o diretor fez de Sombras dos Ancestrais… uma história mais próxima do que podemos chamar de “logicamente narrativa”, algo que nos outros filmes desaparece em meio ao labirinto de símbolos. Este é um filme sobre a vida em movimento, o olhar de Paradjanov para a existência humana como um organismo mítico, cheio de significados e dotado de lirismo e tragédia.

A história de Ivan e Marichka é o ponto a partir do qual se estende uma cadeia de relações prévias e posteriores ao amor infeliz do casal. As famílias inimigas, as mortes resultantes dessa rivalidade e o amor que nasce a partir daí são ecos shakespearianos, mas a comparação com a história do bardo para por aí. O filme segue por uma linha fora de qualquer melodrama. O trabalho no campo, as necessidades humanas e o compromisso com as tradições locais falam mais alto que o sentimentalismo vazio, muitas vezes presentes em obras que tratam do mesmo assunto. O roteiro acompanha o protagonista Ivan desde a infância e as alegrias e infortúnios de sua vida são poeticamente filmados, numa mistura de homem, natureza e espiritualidade.

Transpor para a tela os impulsos humanos e o ciclo da vida não é algo muito grato. Trata-se de transformar em imagem aquilo que é impalpável e que se cria em rede natural, estendendo-se por toda a vida de uma pessoa. Mas o modo como Paradjanov concebeu essa transposição é de fato muito curioso. Primeiro, a captação do espaço natural e cultural em pleno movimento, com uso de câmera subjetiva em ângulos de tirar o fôlego, como a sequência em que a árvore cai em cima de Olexa, ou a proximidade da câmera em relação ao solo no momento da ceifa, dando a impressão de movimento pleno, quando na verdade, a objetiva apenas se afastava conforme o camponês segue em sua atividade. Segundo, a ligação imagética e metafórica entre os elementos naturais e os acontecimentos da trama. Destaco aqui a sequência em que Palagna vai ao campo rezar aos deuses, nua, a fim de fazer Ivan sentir desejo por ela e dar-lhe um filho. No momento em que ela sai de casa, há um corte para um rio, onde um homem dá de beber a uma vaca. A luz da Lua refletida na água em movimento e o formato imagético daí surgido são indicações visuais da fecundação, completada pela presença da vaca, símbolo da Terra nutriz.

O uso da cor e do som se juntam aos muitos símbolos. Não apenas os figurinos, mas a composição das cores do cenário (cuja direção de arte, como em todos os filmes de Paradjanov, é abarrotada de coisas) emparelham ou contrastam com um acontecimento futuro. A música, por sua vez, é a guia da história e está presente em quase todas as cenas. Melodias e canções tradicionais e cânticos religiosos ou ritualísticos se alternam e ajudam a contar a própria vida dos personagens. A impressão que temos é de que um trágico coral grego narra paralelamente parte da trama, dando um poder cada vez maior ao significado das cenas. A trilha sonora não é usada como choque, mas como extensão dos sentimentos: destaque para o momento em que Ivan encontra o corpo afogado de sua amada. Em crescendo, a música acompanha o zoom da câmera, mas quando essa para à distância de um plano médio de Ivan, a melodia desacelera a ponto de nos fazer ouvir os seus batimentos cardíacos orquestrados.

A sequência final é impossível descrever. Se todo o trabalho para representar a vida foi supremo, é representando a morte que o diretor alcança o clímax da película. A ligação entre o mundo real e espiritual se torna indissociável. Devaneios e visões compõem um quadro cênico de realismo fantástico e existencial. A vida é interrompida em um de seus patamares para se tornar real em outra concepção. A morte não traz o imobilismo, ao contrário, tudo em torno movimenta-se, clama, se ilumina, trabalha. O ciclo da vida chega a um de seus pontos críticos, reiniciado alguns minutos depois, com crianças na janela observando algo que é mantido em segredo para o espectador. Ali é o ponto de partida para uma nova cadeia de relações amorosas, traições, solidão, trabalho e culto.

Assim como o pai, Ivan é irremediavelmente esquecido, torna-se uma sombra na memória dos que ficam, é motivo de lamento ou festejo. Sua história servirá como exemplo para as crianças que observam a vida através da janela, mas ele, como ator social, não terá mais importância alguma. É como uma grande via que transporta viajantes para os mais remotos lugares. Sem ela, seria impossível chegar aonde se quer. Mas ninguém se lembra ou se pergunta quem construiu essa via.

Sombras dos Ancestrais Esquecidos / Cavalos de Fogo (Tini Zabutykh Predkiv, URSS, Ucrânia, 1964)
Direção: Sergei Paradjanov
Roteiro: Ivan Chendej, Mikhail Kotsiubinski, Sergei Paradjanov
Elenco: Ivan Mikolajchuk, Larisa Kadochnikova, Tatyana Bestayeva, Spartak Bagashvili, Nikolai Grinko, Leonid Yengibarov, Nina Alisova
Duração: 97 min.

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