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Crítica | Céu de Agosto

por Michel Gutwilen
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As imagens de São Paulo propostas pela diretora Jasmin Tenucci em Céu de Agosto parecem existir em um “não-tempo”. Não há nada que indique objetivamente que o seu filme se passe no futuro, inclusive sendo ele muito bem localizado no presente — durante os incêndios florestais de Amazonas em 2019 (e que cobriram São Paulo de nuvens) — mas o modo como a mise-en-scène flerta com o estranho leva a sensação de uma espécie de distopia apocalíptica. 

A contraposição entre a expectativa da vida em um mundo pessimista marcado pela desordem e a morte parece ser o grande tema central a ser explorado pelo curta, que esteve na seleção da atual edição de Cannes (2021). Em um chá de bebê, um pássaro que cai morto — do extraplano para o plano — se configura como a primeira intrusão de um elemento estranho no espaço seguro da protagonista. Além disso, a cena é decupada cuidadosamente atrás de uma fogueira, o que novamente gera uma sensação de mal-estar, fazendo paralelismo imagético com os incêndios florestais vistos na TV. Após isso, toda a narrativa se configura a partir de contatos desconfortáveis desta mulher com o mundo ao seu redor, como se todos fossem uma potencial ameaça a ela. Um bêbado quase esbarra nela na rua; ela passa pelo meio de um protesto; um pássaro emite sons desconfortáveis; sua avó age estranhamente; o céu parece um presságio do Apocalipse; um homem é “possuído” dentro da Igreja.

Todos esses acontecimentos poderiam ser filmados de uma maneira cotidiana e, teoricamente, não são inverossímeis, mas a grande diferença está no modo como Jasmin filma eles, além do diálogo entre as sequências, que reforça uma visão de mundo limitada ao olhar estranho. A câmera da realizadora está sempre inquieta, seja em travellings, zooms ou buscando reenquadramentos, transmitindo esse estranhamento e a busca por uma zona confortável, além da sensação de que há algo de ruim que pode surgir a qualquer momento dentro do plano. Além disso, a protagonista, muitas vezes, é posicionada deslocada em todos os ambientes em que está, seja na Igreja ou no meio da multidão. 

Ora, até aqui, teoricamente, minha descrição de Céu de Agosto leva a crer que se trata de um filme muito instigante, provocador e misterioso, com uma mise-en-scène muito bem executada. De fato, isoladamente, ele é. Contudo, há um porém na maneira maneira como sua forma interage com o seu conteúdo. Até aqui, não citei uma informação crucial da narrativa, propositalmente, que é o fato de a protagonista ser uma mulher grávida. Sua existência reconfigura toda a relação espectatorial que eu possuo com a obra, pois penso que as intenções de Tenucci se tornam nebulosas, ou no mínimo, ambíguas. Como o filme é um convite a um universo desconhecido e não há nenhuma tentativa de ceder uma resposta clara ao espectador (seja em sentido imediato, da narrativa em si, quanto mediato, de suas mensagens e temas), há margem para uma interpretação que considero perigosa e me lembra, tematicamente, outro filme recente, Cafarnaum (2018), ainda que, talvez, essa jamais tenha sido a intenção da diretora (não tive a oportunidade de ler nenhuma entrevista sua sobre a obra). 

Enquanto o filme libânes de Nadine Labaki propunha uma série de acontecimentos trágicos com uma criança, através de um viés realista, para advogar uma ideia de que pessoas pobres não devem ter filhos (pois a vida que eles viveriam seria muito mais sofrida do que o simples fato deles não nascerem), Céu de Agosto parece caminhar por uma linha muito tênue para propor uma ideia parecida, só que ambiental, ao invés de social, e por meio de uma fantasia distópica, ao invés do realismo. Seria algo do tipo: “Será que vale a pena ter uma criança no mundo do jeito que ele está hoje? Aquecimento global, violência para todo lado, pessoas bêbadas.. que futuro é esse que meu filho viverá? Ele não merece viver as consequências das ações de minha geração!” Não só essa é uma visão de mundo extremamente diferente da minha, como parece que a narrativa existe apenas para convencer o espectador a simpatizar com tal ideia, o que me soa como manipulação emocional através da ficção. 

Por outro lado, admiro a frontalidade de Céu de Agosto ao assumir um viés conservador, que aqui funciona como um Divino Amor às avessas (pois a obra de Gabriel Mascaro é também um distopia, só que faz críticas à religião). Afinal, a razão da minha admiração neste aspecto é que não é preciso concordar com toda ideologia de um filme, mas é muito mais honesto ver quando ela acontece naturalmente e não de maneira sorrateira. Se ele flerta com a manipulação barata ao fazer o espectador se sentir mal com a ideia de que um filho irá nascer em um mundo condenado ao sofrimento e habitado por pecadores, pelo menos ele é muito claro na indicação de que a Igreja será o refúgio daquela mulher e criança dentro deste Inferno. Enquanto por todo o curta-metragem o contato externo de qualquer elemento com a protagonista é uma ameaça a ela e seu filho, no plano final o abraço dentro da Igreja, funciona como, finalmente, um porto seguro.  

Céu de Agosto —  Brasil, 2021
Direção: Jasmin Tenucci
Roteiro: Jasmin Tenucci
Elenco: Badu Moraes, Ernani Sanches, Gilda Nomacce, Lilian Regina
Duração: 16 minutos

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