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Crítica | Chamas Que Não se Apagam

por Luiz Santiago
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Doze anos depois de trabalharem juntos em Pacto de Sangue (1944) e três anos depois da parceria em No Reino das Sombras (1953), Barbara Stanwyck e Fred MacMurray voltaram a se reencontrar nas telonas, desta vez sob a batuta de Douglas Sirk e em um melodrama de cair o queixo, daqueles que de tão irônicos, ambíguos e sugestivos, revestidos de uma falsa e proposital simplicidade de enredo, provavelmente irá “esconder” de alguns espectadores parte das críticas que dirige à sociedade.

Ao fugir da ameaça nazista na Alemanha, Sirk encontrou na Terra do Tio Sam o local perfeito para exercer sua irônica porém muito elegante crítica às convenções preestabelecidas pela sociedade, algo que ele foi direcionando aos costumes do american way of life na década de 1950, quando então seus melodramas ganharam o gosto do público e da crítica, dando a ele o merecido título de mestre do gênero.

Depois de Sublime Obsessão (1954) e Tudo o que o Céu Permite (1955), dois grandes filmes do início de sua fase áurea, Sirk passou a exercer um controle cada vez maior sobre seus filmes, intensificando um trabalho autoral que marcava sua carreira desde a fase alemã. Este amplo controle lhe permitiu não só tornar mais densa a exposição das mazelas morais das classes sociais como também investir em um primoroso trabalho estético, caráter que neste Chamas Que Não se Apagam salta aos olhos através do duro preto e branco da fotografia de Russell Metty, que chega até brincar com o noir.

A trama aqui se constrói em torno de Clifford Groves (personagem do ótimo Fred MacMurray), que na primeira parte do filme representa a crítica de Sirk em relação à monotonia do casamento. O roteiro, escrito por Bernard C. Schoenfeld, é bastante objetivo e simples ao mostrar o quanto a esposa e os filhos minavam a energia do protagonista. Todos os planos para sair da rotina são “boicotados” pelos rebentos e até dói no coração do espectador ver o que acontece na sequência inicial, quando ele prepara o aniversário da esposa e acaba sendo deixado em casa; nem sequer os filhos mais velhos o acompanham ao teatro ou se esforçam para agradecer o convite.

Esse momento faz a ponte para a entrada da poderosa Barbara Stanwyck em cena. Ela vai trazer à tona esse desprezo dos filhos em relação ao pai e a “cegueira” da esposa em relação às necessidades da vida independente do casal. Um momento sozinhos, uma viagem de “nova lua de mel”, uma comemoração íntima para quebrar a monotonia, qualquer uma dessas coisas serviria para manter o relacionado ativo, mas, pelo menos aqui, uma das partes não se esforça nem um pouco para que isso aconteça (na vida real sabemos que é mais comum os dois lados se acomodarem, na maioria das vezes, pelos mesmos motivos mostrados no filme).

Quando o espectador está quase pronto para defender Clifford, o roteiro dá uma guinada e mostra o lado negativo do protagonista, complementando o jogo de que a culpa é sempre compartilhada, mesmo se ela aparece como uma reação a algo. No caso de Clifford, a passividade é o seu defeito-culpa e, no caso da família, o egoísmo ou desequilíbrio na atenção cedida a um ou outro membro do grupo.

Ao mostrar esses percalços de convivência, Sirk utiliza um recurso simples mas tremendamente eficiente, fazendo com que os personagens sejam filmados sempre em quadros dentro do quadro, por exemplo, ‘presos’ no frame de uma janela ou porta, de um corredor apertado com uma pequena abertura ao fundo, de um cômodo com fronteiras definidas na profundidade de campo, etc. É como se nenhum deles tivesse assim tanta opção de ação e, o mais cruel de tudo, vivessem como se tivessem. Essa questão tem o seu ponto real no texto com a chegada de Norma, mas mesmo nesse caso a liberdade aparece como um tipo de prisão e um preço bem alto a ser pago: a solidão.

De um lado, o diretor nos mostra uma vida mecânica, como a do robô que anda e fala (a cena de Clifford olhando pela janela e o robô andando na mesa, metaforizando-o, é lancinante); de outro, temos a liberdade de ação, porém, a impossibilidade de estar com alguém que se quer, manter longos vínculos, criar raízes. É como se a vida fosse o escolher de um menor mal necessário e o aproveitar ao máximo os suspiros de prazer que cada um desses males são capazes de proporcionar.

Chamas Que Não se Apagam é um grande melodrama de Douglas Sirk, uma de suas obras mais irônicas (é como se ele estivesse gargalhando com amargura na frase-desfecho: “eles não formam um ótimo casal?”), um filme que discute o sacrifício em detrimento de uma instituição que não tem respeito nem por si mesma e nem pelas pessoas que se sacrificam por ela. E a questão está bem aí: para fazer parte do grupo, é necessário fazer sacrifícios, anular-se, fingir aceitar, ser ao menos 50% “Rex, o robô que fala e anda”.

Com uma trilha sonora perfeitamente contextualizada (há uma cronometrada economia de peças musicais em certos pontos, o que ajuda a criar uma boa atmosfera de reflexão que explode em sentimentos logo em seguida, com a entrada da orquestra) e um elenco afinadíssimo, Chamas Que Não se Apagam abre e fecha o ciclo do amor pessoal e familiar de uma forma que pouco se vê no cinema.

Se há um ponto realmente falho, ele consiste na transição entre o drama do homem casado que tem sua vida e o desejo de juventude, comuns a qualquer pessoa que envelhece, consumidos pela agenda cotidiana mas que, pelo amor aos componentes desta agenda e por aquilo que o cenário futuro lhe apontava, escolhe o caminho correto aos olhos da comunidade na qual está inserido. Perceba que o amor não é o objeto de decisão porque, independente de qual fosse, ele estaria lá. As escolhas aqui estão muito além dos sentimentos. Elas obedecem mais a uma estrutura externa do que ao afeto, a paixão, a paternidade.

Após a cena final, eu não pude pensar em outra coisa senão naquele também irônico conto de Marcelino Freire a respeito do amor, que, de maneira muito providencial e simbólica, pode ser usado para concluir Chamas Que Não se Apagam:

Amor salvador. Cristo mesmo quem nos ensinou. Se não houver sangue. Meu filho. Não é amor.

Chamas Que Não se Apagam (There’s Always Tomorrow) – EUA, 1956
Direção: Douglas Sirk
Roteiro: Bernard C. Schoenfeld (baseado em história de Ursula Parrott)
Elenco: Barbara Stanwyck, Fred MacMurray, Joan Bennett, William Reynolds, Pat Crowley, Gigi Perreau, Jane Darwell, Race Gentry, Myrna Hansen, Judy Nugent
Duração: 84 min.

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