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Crítica | Chapelwaite- 1ª Temporada

Vampirismo e maldições como pano de fundo para história de legado e traumas familiares.

por Rafael Lima
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Quando eu soube que o conto Jerusalem’s Lot, de Stephen King (publicado na antologia Sombras Da Noite) ganharia uma adaptação em formato de série pelo canal Epix, fiquei intrigado. O conto que funciona como uma prequel do romance Salem não parecia ter material suficiente para sustentar os dez episódios propostos pelo programa, o que me fez pensar no tipo de adaptações que precisariam ser feitas, e se elas não sacrificariam o espírito do ótimo material original. Felizmente, Chapelwaite pode se orgulhar de estar entre as boas adaptações de King, não só respeitando a base, mas usando as necessárias mudanças para tornar a série ainda mais próxima do estilo das histórias contadas pelo autor.

Na trama, situada em 1850, Charles Boone (Adrien Brody) é um capitão baleeiro, que após a morte da esposa, recebe a notícia de que seu primo Stephen (Steven McCarthy) também faleceu, lhe deixando de herança o casarão de Chapelwaite, localizado na aldeia de Preacher’s Corners, no Maine. Decidido a recomeçar a vida, Charles muda-se com os seus três filhos para Chapelwaite, onde pretende se estabelecer reativando a antiga serraria da família, mas logo é confrontado pela hostilidade dos moradores locais, que acreditam que membros da família Boone trouxeram uma praga para a cidade no passado, e não querem novos representantes desse clã vivendo por lá. A situação se complica quando Charles passa a sofrer com terríveis alucinações, ao mesmo tempo em que uma criatura noturna começa a atacar os aldeões de Preacher’s Corner. 

Criada por Jason e Peter Filardi, Chapelwaite, expande o universo do material base, ao dar uma família e um background para o protagonista raso do conto, além de explorar de forma mais detalhada o ódio de Preacher’s Corners contra os Boone. As mudanças feitas pelo time de roteiristas não só permitem que a trama tenha escopo para uma narrativa seriada, mas a aproxima mais dos tropos de Stephen King do que os presentes no próprio conto. Um dos grandes conflitos de Charles durante a temporada é o medo que ele tem de que o seu estado mental cada vez mais abalado pelas alucinações o leve a machucar os seus filhos, da mesma forma que o seu próprio pai tentou fazer no passado, em uma referência direta ao clássico O Iluminado

A forma como a série explora os pequenos dramas e pecados da aldeia como o casamento infeliz e o caso extraconjugal vivido pelo Pastor Burroughs (Gord Rand), ou o racismo que os jovens Boone enfrentam na escola, que não está relacionado a fama maldita dos Boone, e sim a sua descendência nativo americana por parte da mãe ajudam a criar um microcosmo narrativamente rico para o universo do programa. Tal abordagem em muito lembra a abordagem de King para as suas tramas de pequenas cidades bucólicas assoladas por males sobrenaturais, que apenas expõe as verdades escondidas do cotidiano de tais comunidades. Até a figura de um escritor, comum nas tramas de King, surge através de Rebecca (Emily Hampshire), que aceita tornar-se governanta de Chapelwaite em busca de inspiração para as suas histórias.

Chapelwaite, porém, encontra a sua voz, desenvolvendo-se em seus episódios iniciais como um suspense gótico, que apesar das ameaças externas, lida principalmente com os Boone enfrentando os seus traumas mal resolvidos. Se os traumas de infância de Charles se manifestam principalmente em suas alucinações com criaturas pestilentas como ratos e vermes, a recente morte da matriarca Boone também continua assombrando a família, especialmente a jovem Loa (Sirena Gulamgaus), que se isola dos parentes e torna-se ainda mais ressentida quando o pai e Rebecca se aproximam. O roteiro desenvolve bem o crescendo de tensão da trama ao longo dos episódios em dois níveis, o micro com a família Boone e Rebecca em Chapelwaite, e o macro, que cobre os acontecimentos na aldeia. Esses núcleos vão se entrelaçando sem pressa, enquanto a série apresenta os elementos que formam a sua mitologia, como o vilarejo vizinho de Jerusalem’s Lot, dominado por vampiros, e a história dos Boone com o grimório De Vermis Mysteriis.

Mas nem tudo são flores na construção narrativa da temporada. Em seus episódios finais, o show se entrega aos clichês mais básicos das histórias de vampiro, sem saber se valer bem de tais clichês, o que é representado principalmente pelo fraco vilão vivido por Christopher Heyerdahl, mais interessante pelo trabalho de maquiagem que homenageia Nosferatu (1922) do que por sua presença como ameaça. Mas talvez o maior problema da segunda metade da temporada estejam centrados nas ações de Loa, cujas trocas de lealdade visam criar uma personagem ambígua, mas que infelizmente funcionam mais como um dispositivo de roteiro para que a história avance, já que as mudanças de atitude da garota nunca soam bem fundamentadas. Isso se torna um problema ainda maior quando as principais resoluções dramáticas da série passam a girar em torno da garota, que tem uma construção bem problemática.

Entretanto, não se pode negar que Chapelwaite acerta no que mais lhe interessa, que é a construção do terror e do horror. O design de produção não só faz um excelente trabalho de reconstituição da época, como cria cenários lúgubres e sufocantes, como as florestas que cercam Preacher’s Corners, ou a decrépita vila fantasma que é Jerusalem’s Lot. O próprio Chapelwaite é um verdadeiro personagem dentro da história, surgindo como um ambiente intimidador e até imprevisível. O programa também possui um trabalho de maquiagem e efeitos práticos dignos de nota, que criam momentos deliciosamente perturbadores, como aquele envolvendo uma banheira cheia de vermes, ou um bebê deformado. O trabalho de direção é muito competente na construção do suspense e da atmosfera do programa, embora não se destaque tanto na ação, o que prejudica os já citados episódios finais, que dependem mais dela.

Mas se tem algo que é sempre consistente ao longo de Chapelwaite é o seu protagonista. Adrien Brody está excelente, sendo a grande força dramática da série, ao criar um herói introspectivo, que tenta a todo custo proteger a família, enquanto teme que ele mesmo possa ser uma ameaça para eles. Ainda que conceda a Charles uma personalidade que sabe ser forte e confiante quando precisa, Brody brilha especialmente nos trechos em que essa fachada de força cede espaço para o desespero, o que apenas torna os momentos de superação do personagem mais admiráveis. Emily Hampshire já desempenha uma função mais mecânica, ao servir como os olhos do público e a voz da razão dentro de Chapelwaite, mas concede carisma suficiente para a governanta para nos preocuparmos com ela, algo vital já que a mulher muitas vezes assume a função de narradora da história. 

Gord Rand como o Pastor Burroughs faz um trabalho interessante ao retratar o processo de perda de fé de seu líder religioso, que vai se tornando cada vez mais errático no decorrer das tragédias que vai presenciando, contrastando com a figura centrada dos episódios iniciais. A estreante Jennifer Ens como a filha mais velha de Charles; Honor, chama a atenção ao demonstra grande domínio de cena nas passagens de enfrentamento da personagem, seja defendendo os irmãos do racismo ou confrontando o personagem de Brody, deixando claro ao público que a jovem possui uma força interna que talvez seja maior que a do pai. Vale ainda destacar o trabalho de Genevieve DeGraves como a perigosa e provocante Apple Girl, que aproveitando as oportunidades que o texto lhe dá de ressignificar o arquétipo da noiva vampiro surge em cena como uma vilã muito mais ameaçadora e inquietante que os genéricos vilões principais.

Embora perca força em seu terço final, quando os conflitos ficam menos pessoais para entrar na velha luta para salvar o mundo; e alguns atalhos de roteiro possam irritar, nos deixando com a impressão de que o resultado poderia ser bem melhor, o saldo final ainda é positivo, e vale a pena dar uma chance para Chapelwaite. O show constrói uma atmosfera gótica de mistério que prende o espectador, e conta com um protagonista engajante que nos faz embarcar em seus dramas sem dificuldade. Temos aqui uma adaptação competente do conto de Stephen King para a narrativa seriada, que entrega um drama horrorífico onde os vampiros e maldições são o pano de fundo para a jornada de um pai tentando se reconectar com os filhos após uma grande perda, enquanto tenta deixar o melhor legado afetivo e moral para eles.

Chapelwaite- 1ª Temporada – EUA.  22 de Agosto de 2021 a 31 de Outubro de 2021
Criadores: Jason Filardi e Peter Filardi
Diretores: Burr Steers, Jeff Renfroe, Jeff Kosar, Rachel Leiterman, David Frazee, Michael Nankin
Roteiro: Jason Filardi, Peter Filardi, Scott Kosar, Declan de Barra (Baseado em conto de Stephen King)
Elenco: Adrien Brody, Emily Hampshire, Jennifer Ens, Sirena Gulamgaus, Ian Ho, Hugh Thompson, Gord Rand, Genevieve DeGraves, Trina Corkum, Devante Senior, Allegra Fulton, Eric Peterson, Michael Hough, Jennie Raymond, Dean Armstrong, Steven McCarthy, Christopher Heyerdahl, Gabrielle Rose, Briony Merritt
Duração: 10 episódios de aproximadamente 50 minutos

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