Este compilado traz as críticas para dois curtas de início de carreira do diretor francês Éric Rohmer: Charlotte e seu Bife, originalmente lançado em 1960 e Nadja à Paris, originalmente lançado em 1964. Boa leitura e não esqueça de deixar o seu comentário ao fim da postagem!
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Charlotte e seu Bife
Charlotte e Walter, depois de se despedirem de Clara, entram pela porta de frente da casa de Charlotte, na cozinha propriamente. Ela prepara um bife antes de sair novamente para pegar o trem num dia de inverno com bastante neve lá fora. Walter está encostado num canto da parede enquanto a personagem feminina termina sua refeição. Entre uma mordida e outra, reflexões decisivas são feitas por estes heróis reais e se enfim chegam à conclusão de que não se amam mais é porque há muito a relação entrou naquele lugar complicado de monotonia em que as conversas difíceis não acontecem e as mágoas se acumulam, gerando um inevitável estranhamento. Aliás, estranhamento parece ser o termo definitivo para caracterizá-los.
Novamente, a utilização da estrutura de um curta-metragem é feita com muito conhecimento do gênero “short film” ou “court-métrage”. Não peca em excesso, não deixa fios para construir, não fala de menos nem de mais. É tudo milimetricamente enredado para caber num espaço curto e perfazer completude e inteireza. Se encontramos então realismo nesta película é pelo fato de que nada é mais verossímil do que uma breve discussão de relacionamento na cozinha de casa enquanto se preparam para sair. Contamos ainda com a participação de Godard no papel do namorado e de Anne Couderet como Charlotte e um adendo extra para Clara (Andrée Bertrand) dublada pela incrível Anna Karinna.
Tudo o que Rohmer precisa para falar dos descaminhos de uma relação amorosa é de um cômodo, uma lente de 16mm e dois personagens que transitam no máximo por 3 metros dentro do espaço cênico. Temos então um método realista numa forma extremamente simples com falas verdadeiras e precisas. Ele a observa enquanto prepara o bife, tenta se aproximar de algum modo, mas ela está intransigente. Diz inúmeras vezes que a ama, contudo, é genial que nos segundos finais Charlotte diz que não o ama e que ele também não a ama, e ele sabe disso, tanto que não refuta. Se eles se beijam no final não é por amor, mas por costume. Este pequeno estudo de relacionamento tem um brilho especial e um modus muito singular no desenvolvimento do enredo. Enfim, o casal sai e fecha-se a porta atrás deles. É a maneira encontrada por Rohmer, não só para fechar o seu arco narrativo, mas para dizer que acabou, se é que me entendem…
Présentation ou Charlotte et Son Steak (Charlotte e Seu Bife, França, 1960)
Direção: Éric Rohmer
Roteiro: Éric Rohmer
Elenco: Jean-Luc Godard, Anne Couderet, Andrée Bertrand, Anna Karinna.
Duração: 12 min.
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Nadja à Paris
Nadja é uma estudante de Literatura na Sorbonne. De origem norte-americana misturada com iugoslava, ela está em vias de publicar a sua tese sobre Proust, mas enquanto não faz, passeia pela cidade. Esta magnífica apresentação do centro da cidade de Paris conduzida pelas mãos de Éric Rohmer, pelos passos e texto de Nadja Tesich nos leva para uma viagem lúcida aos principais pontos ou os mais interessantes da cidade, com guia do olhar curioso de Nadja, que não é francesa, o que torna tudo muito mais vívido e com ares de novidade.
Não seria demais pensar que – além do realismo conferido ao passos de Nadja ao redor da Paris moderna – estamos diante de uma metáfora continuada, isto é, uma alegoria. Nadja é mais do que uma estudante, ela é a representação de Paris. Paris e Nadja têm cinco letras, são personagens femininas… Não é à toa que caminha pelas boulevards, apresenta-nos a universidade, aos botecos, às bancas, às bibliotecas, aos cinemas e teatros, aos lugares recônditos da cidade etc. Aos poucos, pelos passos de Nadja, Paris vai tomando forma, ao ponto de, metaforicamente, a cidade de Paris se tornar um personagem e Nadja, a representação dela.
O texto escrito por Tesich tem ampla influência do clássico Nadja de André Breton, mestre do surrealismo que faz a sua personagem onírica perambular pela cidade de Paris, nos mostrando, no percurso de suas aventuras, os lugares que mais marcaram a sua vida na França. Inclusive, na obra bretoniana, há uma cena em que Breton encontra Nadja ao caso sob uma tempestade – trecho que parece ser mimetizado no curta-metragem de Éric Rohmer.
No período de um dia inteiro, o realizador encapsula a viagem reveladora da sua heroína no entremeio de encontros e desencontros, afinal, a cidade é o lugar ideal para que isso aconteça a todo momento. Mesmo não sendo uma errante como os personagens de Baudelaire e Breton, Nadja, de Éric Rohmer, é uma típica flâneur: caminhante, exploradora, observadora. Um símbolo e um emblema da burguesia francesa e uma marca do cinema urbano do cineasta.
Nadja à Paris (Nadja em Paris, França, 1964)
Direção: Éric Rohmer
Roteiro: Éric Rohmer, Nadja Tesich
Elenco: Nadja Tesich, Jean-Pierre Léaud
Duração: 13 min.