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Crítica | Chernobyl (2019)

por Ritter Fan
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Cada mentira que contamos gera uma dívida com a verdade.
– Legasov, Valery

Lembro-me muito claramente, apesar da tenra idade, de ter ficado extremamente assustado com filmes como Síndrome da China e O Dia Seguinte, o primeiro literalmente prevendo o acidente de Three Mile Island que aconteceria 12 dias depois de sua estreia e o segundo deixando às escâncaras os efeitos devastadores de uma explosão atômica. Quando as notícias do acidente de Chernobil começaram a aparecer de maneira errática na televisão, fiquei várias noites sem dormir.

Chernobil marcou uma geração e foi um dos catalisadores da derrocada da União Soviética, mas sua verdadeira dimensão e consequências são praticamente incomensuráveis muito diante das mentiras e dos “segredos de estado” que  enterraram profundamente qualquer traço da verdade, especialmente em um mundo pré-internet. Mais ainda, o acidente de Chernobil foi um alerta, uma demonstração do poder destrutivo da energia atômica se tratada com descuido e com medidas criadas muito mais para escudar responsáveis do que para efetivamente garantir segurança e isso por mais importante que ela possa ser para a humanidade como uma alternativa largamente utilizada para a geração de energia elétrica.

A minissérie da HBO criada e escrita por Craig Mazin (uma surpresa, considerando seu currículo paupérrimo até aqui composto de bobagens fracas como Se Beber, Não Case! II e III e O Caçador e a Rainha do Gelo), portanto, já nascia poderosa, com uma história que não precisaria de muito para tornar-se memorável. Mas o resultado do trabalho de Mazin é mais do que memorável. Chernobyl é, sob o ponto de vista artístico, a maior obra de horror dos últimos vários anos e ponto final. Se encontramos dúzias de filme e séries de ficção lidando com ameças invisíveis que são fruto da imaginação humana, poucas vezes lidamos com algo dessa magnitude e que efetivamente aconteceu – e em escala bem menor até mesmo no Brasil, com o incidente com césio-137 em Goiânia, em 1987 – e que lida com uma devastadora e incontrolável ameaça invisível capaz de matar da maneira mais horrível possível, corroendo os seres vivos por dentro.

Começando dois anos depois da explosão do reator número 4 da usina nuclear de Chernobil, na Ucrânia soviética, acompanhamos o silencioso suicídio de Valery Legasov (Jared Harris) depois de gravar fitas relatando o que verdadeiramente acontecera no fatídico dia. O jogo político de mentiras já fica evidente nessas breves sequências iniciais que estabelecem o tom lúgubre e sombrio que toma de assalto cada um dos cinco episódios da minissérie, que logo retorna para dois anos antes, minutos (ou talvez segundos) após o acidente, dentro da sala de controle da usina. Lá, acompanhamos Anatoly Dyatlov (Paul Ritter – não, não tem parentesco algum comigo), o engenheiro-chefe adjunto da usina e toda sua equipe reagindo ao acidente sem sequer reconhecer seu tamanho, algo que só nós sabemos, na verdade. Tudo é mantido em planos fechados, claustrofóbicos, com essa narrativa frenética trabalhada em camadas como a proverbial cebola. Dyatlov nega o que está nos olhos de cada um de seus subalternos, preocupa-se em procurar responsáveis e conter o fluxo de informação e não em efetivamente fazer algo para mitigar os danos. Logo, os executivos da usina mais diretamente ligados a ele são acordados na madrugada somente para fazer coro ao jogo de “empurra” e ao encobertamento máximo de tudo o que ocorreu.

Em meio a isso tudo, o espectador fica perdido, sem saber em quem exatamente acreditar, se é que é possível acreditar em alguém. Essa claustrofobia é ditada não só pelos espaços confinados, como pela câmera nervosa (mas não tremida) que pula de rosto em rosto e estuda reações, além de focar em alguns momentos heroicos ainda no coração da usina semi-destruída. Quando finalmente a narrativa nos leva para fora, o horror vem daquilo que conhecemos – ou ouvimos falar – sobre o acidente. Bombeiros mergulham em seu trabalho imediatamente sem qualquer preocupação com a radiação (que radiação, não é mesmo?) e os habitantes da cidade próxima de Pripyat saem às ruas não em pavor como gostaríamos que fosse, mas sim em completa ignorância e achando lindo as chamas coloridas que saem lá da usina.

A desinformação, o encobertamento, as mentiras, a ignorância, a irresponsabilidade são os grandes monstros aqui e isso fica genialmente definido e estabelecido logo no crucial primeiro episódio – 1:23:45 -, capaz de nos prender às cadeiras e sofás de casa de tal maneira que só voltamos a respirar quando os créditos começam a rolar. Quem saiu gritando aos quatro ventos que “cancelaria a HBO” por causa lá do final da série dos dragões, não faz ideia do que o canal tem a oferecer para além da fantasia medieval e Chernobyl é a mais recente prova cabal disso, fazendo em cinco episódios o que muita série não faz em temporadas inteiras.

E é ainda no primeiro episódio que entram em cena Legasov, cientista e diretor adjunto do Instituto Kurchatov, que logo percebe que o problema é muito maior do que reportado, e Boris Shcherbina (Stellan Skarsgård), burocrata do Partido e membro do Conselho de Ministros do Politburo que, por seu turno, inicialmente tenta manter tudo sob controle não com ações, mas com supressões, inclusive em relação a Legasov, criando uma relação antitética fenomenal entre os dois personagens-chave. Legasov é a voz da ciência e Shcherbina é a voz do Estado totalitário que não pode de forma alguma demonstrar sinais de fraqueza, mesmo que o que esteja em jogo seja a vida de milhões de pessoas em boa parte da Europa Oriental e além. A tensão causada por esse “jogo” é outro elemento que amplifica a sensação de horror e claustrofobia, literalmente deixando o espectador em uma desesperadora posição passiva que chega a dar raiva.

O terceiro vértice protagonista é apresentado logo no episódio seguinte, na forma da personagem Ulana Khomyuk (Emily Watson), na verdade uma amálgama dos diversos físicos nucleares que trabalharam para resolver o problema em Chernobil. Detectando níveis de radiação altos demais em Minsk, 450 quilômetros de distância do acidente, ela deduz praticamente tudo o que ocorreu a partir da análise de dados, partindo para ajudar Legasov em sua empreitada e, depois, para investigar detalhadamente o que levou ao acidente. A personagem funciona como uma “consciência” até mesmo para Legasov, que por vezes é obrigado a dobrar-se diante do peso da política ao redor do ocorrido e, ainda que ela não tenha presença constante na série, o trabalho de Watson é marcante.

Mas, realmente, do lado da construção de personagens, o que há de destaque é o relacionamento entre Legasov e Shcherbina, no melhor estilo buddy cop, se é que eu posso usar uma classificação leve dessas diante da solenidade que é essa minissérie. Catalogados como inimigos em suas respectivas apresentações na obra, os dois vão construindo laços de respeito e de amizade na constante luta para conter os problemas da usina ao longo das horas e meses seguintes, mesmo que, para isso, tenham que sacrificar sua saúde por simplesmente estarem ali, expostos à radiação. Se Legasov é logo visto com altivez e a voz da verdade (é curioso notar como Harris viveu papel real parecido em The Terror), Shcherbina é a burocracia em pessoa. Mas há um meio termo que não demora a ser enxergado pelo dois, com os dois atores carimbando o passaporte para a temporada de prêmios da televisão.

Recheando a narrativa principal, a minissérie ainda tem tempo para lidar com outras situações dolorosas como a do bombeiro Vasily Ignatenko (Adam Nagaitis), um dos primeiros na cena da explosão e sua esposa grávida Lyudmilla (Jessie Buckley), ou momentos heroicos como os três voluntários que vão em direção à morte certa para desligar válvulas debaixo do núcleo do reator e os mineiros que precisam trabalhar 24 horas por dia durante semanas para cavar túneis sob a usina, além do garoto Pavel Gremov (Barry Keoghan) que tem como função matar os animais domésticos que ainda vivem na região colocada em quarentena. Cada uma dessas sequências, a primeira especialmente sendo trabalhada ao longo de mais de um episódio, ilustra um tipo de consequência do acidente e alarga o escopo da minissérie. Não há arcos de personagem ali, com cada um funcionando mesmo como “ilustrações” – todas reais ou baseadas na realidade, vale frisar – que amplificam o drama humano, aproximando-nos ainda mais desses eventos.

E, como se isso não bastasse, Johan Renck, que dirigiu todos os episódios, sabe cuidar para que cada “desvio narrativo” tenha sua própria atmosfera. Se a tensão é o elemento comum que dá a cola narrativa para a série, Renck empresta contornos de horror às ações na “piscina” no subsolo da usina, com direito até a jump scares e também ao drama do bombeiro e sua esposa, mas este com uma vagarosidade torturante, de arrepiar os cabelos da nuca. Por outro lado, há lirismo nas sequências do jovem Pavel em seu repugnante trabalho de chacinar cachorros e gatos, de forma que o que vemos ali é um recorte da perda da inocência em um arco quase que completamente separado de todo o resto, mas que funciona maravilhosamente bem para dar arrimo ao drama.

Mas não podemos perder de vista outros dois elementos essenciais para o êxito da minissérie. O primeiro deles é a fotografia de Jakob Ihre que trabalha uma paleta de cores acinzentada, árida, por vezes cambando para um verde doente, apodrecido, que não só fala muito da radiação, o grande vilão invisível, como também de toda a degradada estrutura social, política e econômica da União Soviética na segunda metade dos anos 80, já nos estertores de um sistema falido. Além disso, Ihre é inclemente na forma como ele foca o elenco, algo que é ajudado pela equipe de maquiagem e de design de produção, que retira todo o glamour do elenco principal.

O outro elemento é a trilha sonora assombrosa de Hildur Guðnadóttir, que trabalhou como parte da equipe musical em magníficas obras como A Chegada e Os Suspeitos e em breve poderá ter seu trabalho de composição ouvido na trilha do filme solo do Coringa. Sem ser intrusiva, as cordas que ela privilegia no que criou para Chernobyl amplificam os sentidos, pontuando a tensão, o medo e o puro horror com maestria, algo que continua mesmo em sequências mais leves, se é que há alguma que possa ser verdadeiramente classificada assim. A sincronização cirúrgica das composições por parte de Renck, evitando atropelamentos e a sobreposição da trilha sobre o que vemos na tela. Há um belíssimo, mas sutil trabalho nesse quesito que por isso mesmo só engrandece o conjunto.

Estruturalmente, a minissérie usa dois episódios e meio para lidar com os eventos imediatos após o acidente e mais um episódio e meio para focar nas consequências mediatas, incluindo aí a conturbada investigação de Khomyuk sobre o ocorrido, que começa a caminhar em uma direção incômoda ao Estado totalitário. Em outas palavras, é ao longo dos quatro primeiros episódios que a grande história é realmente contada, restando apenas o capítulo final que, aqui, serve como um arremate ou como a finalização de um quebra-cabeças por assim dizer, para trazer o epílogo ou um semblante de resolução. E é nesse ponto – e apenas aí – que repousam minhas reservas sobre a minissérie e que me impediram de dar a nota máxima.

Usando o julgamento de Dyatlov como palco, o episódio intercala flashbacks para horas antes da explosão, preenchendo, finalmente, espaços que haviam ficado em branco. Com os testemunhos de Shcherbina, Khomyuk e principalmente de Legasov, somos levados ao começo de tudo, com longas e detalhadas explicações sobre o funcionamento de uma usina nuclear e a reconstrução dos eventos que levaram ao fatídico acidente, resultando em um panorama completo e uma hierarquia de responsabilidades que vai além do que o todo-poderoso Estado gostaria. Mesmo que as atuações da trinca principal e também de Ritter nessa altura do campeonato sejam excelentes e hipnotizantes, creio ser impossível deixar de concluir que o roteiro de Mazin errou no ponto ao resumir tudo o que vimos ao longo de quatro horas em mais uma hora de “recapitulações”. Claro que há o drama pessoal de Legasov, que precisa decidir entre manter a farsa ou revelar tudo o que sabe, mas isso vem com um custo narrativo alto que não faz mais do que explicar o que já sabemos, o que já foi explicado e o que já vimos. E, pior, como estamos em um julgamento, há literalmente até mesmo um gráfico “interativo” para deixar tudo bem explicadinho, em seus mínimos detalhes. Da mesma forma, o diálogo final entre Legasov e Shcherbina, apesar de bonito (quase brega) descamba para o texto expositivo e apenas reitera aquilo que ficara óbvio pela magistral construção dos personagens.

Em uma série com apenas cinco episódios, ter um inteiro para explicar o que já vimos deveria ser um pecado mortal que exigisse um julgamento mais inclemente do que a redução em meia estrela apenas. No entanto, a grande verdade é que essa longa “cena dos capítulos anteriores” não diminui muito o brilho do conjunto e acaba servindo como um “Chernobyl for dummies” razoavelmente aceitável. É, mal comparando, o que a explicação do psiquiatra é para o final de Psicose ou o que o discurso choroso de Rambo é para Rambo – Programado para Matar.

No final das contas, fica meu agradecimento à HBO e a Mazin por terem reacendido meu pavor de infância e adolescência da ameaça nuclear e por terem criado a minissérie de horror pela qual as futuras obras de horror terão que ser comparadas. Chernobyl é televisão do mais alto gabarito e merece desde já figurar entre as grandes obras da década.

Chernobyl (Idem, EUA/Reino Unido – 06 de maio a 03 de junho de 2019)
Direção: Johan Renck
Roteiro: Craig Mazin
Elenco: Jared Harris, Stellan Skarsgård, Emily Watson, Paul Ritter, Jessie Buckley, Adam Nagaitis, Con O’Neill, Adrian Rawlins, Sam Troughton, Robert Emms, David Dencik, Mark Lewis Jones, Alan Williams, Alex Ferns, Ralph Ineson, Barry Keoghan, Fares Fares, Michael McElhatton
Duração: 60-72 min. por episódio (5 episódios no total)

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