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Crítica | Cherry – Inocência Perdida

por Iann Jeliel
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Cherry

O pior tipo de filme ruim é aquele que já se acha bom antes de provar sua qualidade. Aquele que já parte da premissa de que o espectador vai comprar sua ideia e gostar de antemão. Cherry é exatamente esse tipo de filme, com um agravante: nem ele sabe exatamente qual a ideia que quer em sua execução. Os irmãos Russo parecem ter inflado um pouco o ego depois dos holofotes que ganharam ao dirigir a duologia da saga do infinito da Marvel e incorporaram um espírito “Guy Ritchieano”, no qual o estilo se torna maior que a substância, ao invés de ser colocado para sua dramaturgia obter substância. Uma estilização totalmente gratuita a fim de obter uma “popização” de sua história e ainda querer vendê-la como um drama supercomplexo sobre juventude perdida.

Não é difícil de decifrar a gratuidade das escolhas estéticas dos Russo, basta perguntar primeiramente qual o intuito da inserção da quebra de quarta parede? Narrativamente falando, nenhum. Cherry começa pela última cena a fim de estabelecer essa linguagem, porque sim. Na teoria, é para deixar o espectador curioso em saber o que levou a jornada do personagem a chegar naquele ponto, mas na prática, se fosse mostrado em cronologia linear, não faria a menor diferença no efeito da construção do desenvolvimento. Tal como a quebra da quarta parede, esses elementos só estão ali para disfarçar as limitações do roteiro, especialmente na sua diretriz extremamente expositiva. Ora, não temos ideias para construir uma história sem exposição, então por que não a tornar “cool”? A narração frequentemente narra um evento banal, e logo em seguida, ele acontece (exemplo banal: eu estava andando e com sede, corta para mim, bebendo água), e para isso soar menos ofensivo ao público sendo feito de idiota, o filme articula esses momentos na montagem com uma proposição cômica e irônica totalmente deslocada.

Não tem graça e não deixa a história “pop”, apenas torna óbvia cada etapa do arco do personagem. Se for considerar ainda a divisão superorganizadinha do filme em capítulos para separar cada uma dessas etapas, mais as diferentes formas de filmagem para elas, sem qualquer explicação a não ser fazer com o que o público saiba de que se trata de diferentes temporalidades, fica ainda mais óbvio. Para que filmar em lente angular e widescreen as cenas de treinamento no exército? Por que toda cena de carro tem que fazer uma rotatória em plano-sequência entre todos os personagens? Fica bonito visualmente, mas diferentemente de um filme do Malick ou do Cuáron, não tem propósito narrativo. São recursos soltos que dificultam e muito a tentativa de Tom Holland em compor um personagem multifacetado. O ator, imagino eu, aceitou o papel para demonstrar sua versatilidade, mas se a construção do filme para com o personagem não é síncrona com o que sua atuação tenta construir, não adianta nada. Ela fica resumida em feixes “preparados” de encenação, que no filme são artificiais e vazios.

Há uma dificuldade em simpatizar com Holland também pela má construção moral do personagem. Como dito, o filme acha que o público já estará satisfeito com o que entregou, já estará convencido empaticamente das motivações que levaram o personagem a cometer tais atentados mostrados na história, e que está tudo bem ele fazer por isso. Não é nem um olhar crítico que falta a essas cenas, em seus melhores momentos, Cherry consegue usar a ironia da montagem para ridicularizar a teatralização do exército norte-americano e sua busca eterna por guerras, nem que precise fingir que elas aconteçam. No entanto, ao passo que existe esse olhar torto ao sistema, reforçado por uma inesperada sutileza que foi não mostrar os inimigos nas sequências do Iraque – reforçando o quanto o inimigo são eles mesmos –, seu encaminhamento epilogar trará uma virada de posição, na qual o filme passa a acreditar que, apesar de criar esses demônios nas pessoas, o sistema também é o único capaz de recuperá-las.

Mesmo que eu concorde de algum modo com essa posição e entenda o que o filme quis dizer, a forma como transparece na virada de chave é anunciada com um teor poético tão falsificado e uma romantização tão sensacionalista da trilha sonora que traz uma aparência até de hipócrita ao filme. Parece que os Russo esqueceram que não estão mais na Marvel e que esse não é algum filme de herói – como demonstram as várias referências à cultura pop largadas no meio sem qualquer intuito –, e sim um estudo de personagem que não consegue aprofundar nenhuma de suas facetas mesmo com 140 minutos (intermináveis) para trabalhá-las. Acham que só dizê-las é suficiente para convencer de que ele foi uma mera vítima, tal como sua namorada (Ciara Bravo) – também mal-aproveitada, como todos os secundários –,  sendo que muito do que aconteceu foi culpa de suas escolhas. Falta responsabilidade ao drama, impossibilitada por essa visão comercial de enxergar o potencial “pop” dessas histórias de decadência e já querer executá-las como tal, antes mesmo de fornecer um material sólido que as faria ser “pop” por proporcionarem boas e reflexivas dramaturgias para se acompanhar.

Cherry – Inocência Perdida (Cherry | EUA, 2021)
Direção: Anthony Russo, Joe Russo
Roteiro: Angela Russo-Otstot, Jessica Goldberg (Baseado no livro homônimo de Nico Walker)
Elenco: Tom Holland, Ciara Bravo, Jack Reynor, Michael Rispoli, Jeff Wahlberg, Forrest Goodluck, Michael Gandolfini, Suhail Dabbach, Daniel R. Hill, Fionn O’Shea
Duração: 142 minutos

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