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Crítica | “Chinese Democracy” – Guns N’ Roses

por Iann Jeliel
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Chinese Democracy

Even with your iron fist
More than you got to rule the nation
When all we got is precious time

Falar de Chinese Democracy é uma tarefa complicada sem dar um breve contexto histórico remetente a sua construção extremamente problemática nos bastidores. O álbum, planejado desde 1996, foi basicamente o pilar da separação da formação da banda original, que contava com os lendários Slash – guitarrista que ninguém conhece, né? – e o baixista Duff McKagan, abandonando o grupo alegando divergências criativas com o vocalista Axl Rose, que insistiu no projeto até sua consolidação somente em 2008, 12 anos depois da ideia. Até lá, Rose sofreu com mais turbulências de gravações com outras formações que a banda tentou, ao longo do período estagnado. Muitas delas correspondentes aos motivos que levaram à separação, falando dele como um controlador criativo abusivo, não aceitando críticas de melhorias e querendo refazer canções e gravações que na sua cabeça ainda não estavam do jeito ideal.

Isso foi prolongando a vida estagnada da banda, que parecia fadada ao fim. O discurso no início da década de 2000, com as especulações sobre o álbum não sair, basicamente já os olhava como uma espécie de The Beatles, em que a separação e a ideia de um último álbum só aumentavam a mágica nostálgica da marca, principalmente porque em condições físicas, Axl passava longe de ser aquela voz que encantou o mundo, fora sua capacidade de palco reduzida pelo sobrepeso exposta no Rock in Rio 2001, ou seja, o auge passou e nunca mais veríamos Gun’s N’ Roses em ação novamente. Tanto que, quando o álbum finalmente foi lançado, a assimilação era de qualquer outra coisa, menos com a banda. Falavam muito em ser um trabalho solo de Axl Rose, que só colocou as armas e rosas no meio para vender melhor o disco. Não deixa de ser uma meia-verdade, porque basicamente foi ele que idealizou tudo e era o único remanescente daquele passado lúdico, mas ao mesmo tempo não é algo ruim, porque se pensarmos em termos estéticos, a evolução da discografia da banda até então passava por sua mão, que queria cada vez mais se desvincular do hard rock mais direto de Appetite for Destruction.

Em Use Your Illusion I/II, Axl já compôs sozinho canções como November Rain e Civil War, que tinham essa melodia menos incisiva, passeando por construções líricas mais cadenciadas. A repetição desse caráter acabou sendo a base do estranhamento na logística sonora de Chinese Democracy, mas que, ao menos particularmente falando, é o que mais encanta nele. Cada canção parece ter uma vestimenta instrumental única, e o mais incrível é que nenhuma delas parece remetente a outros tempos, nem se desvincula de uma clara unidade estilística do álbum. Não se trata de uma mistura também, por mais que haja elementos de tudo aqui, desde o rock alternativo eletrônico vigente do século até sintetizadores dos anos oitenta variando seus solos de guitarra agressivos com melosos da época noventista. A construção aglutina essas características em uma harmonia original, que merece aplausos pela extrema competência na curadoria sonora. Há rumores de que essa variação ampla e ainda coesa se deve ao orçamento estrondoso do disco, mas independentemente da vantagem de ter mais dinheiro ou um tempo dedicado a revisões, que certamente ajudaram a atingir o ideal das ramificações de tom, o resultado impressiona pelo detalhismo.

Falando das canções em si, é impossível não começar exaltando a homônima ao título. Arrisco dizer que Chinese Democracy está entre as cinco melhores músicas que a banda já produziu. Talvez esteja falando bobagem, mas o início cadenciado das vozes e sussurros, discutindo num fundo caótico gradativamente silenciando para dar voz a riffs fantásticos de guitarra de Ron “Bumblefoot” Thal, e a voz de Axl ao fundo gritando quase um “Volteeeeeeei, babys” me arrepia em cada pelo do corpo. Se há um duplo sentido ou não na intenção desse início, não faço ideia, fato é que essa música entra chutando a porta do álbum, com uma parte instrumental fantasticamente aliada à potência limitada do vocalista, em suas “falhas” de timbre que se complementam com a jocosidade dos efeitos no baixo de Tom Stinson e retomam o fôlego com arranque da bateria de Bryan Mantia. Fora o solo de guitarra eletrônico no meio, que tudo bem, não é de um Slash, mas é extremamente empolgante. Clichê falar que é a melhor do álbum, até mesmo no caráter temático, que aí sim puxa diretrizes antigas da banda pelo caráter direto. Não à toa a música foi bloqueada em toda a China, não há firulas em sua letra em expor o regime ditatorial do país através de uma alegoria interessante com seu movimento antagônico capitalista.

Indo para Shackler’s Revenge, Catcher in the Rye e Scraped, temos efeitos digitais de sintetizadores utilizados em maior evidência por Dizzy Reed. O tom distorcido da voz de Axl em grave traz um estranhamento aparentemente problemático a essas músicas em sonoridade, apesar de na primeira, por exemplo, ser justificada na própria mencionando o sentimento engraçado da mente do eu-lírico. Aos poucos, em cada uma, o tom autodestrutivo vai “desbagunçando” no avanço do refrão até capturar a potência lírica no meio, quando volta a introduzir um solo eletrônico memorável pela mistura com voice-overs batucados. Better é outra com esse mesmo estranhamento de voz modificada em seu início, porém a quebra vem logo em evidência de um refrão potente com a clássica voz afinada e aguda que marcou o auge de Axl Rose. Claro, sem o mesmo timbre, mas a quebra entre o efeito e sua voz serve justamente como disfarce, e a escolha desse tom é o ideal para a relação da letra, que é exclusivamente pessoal dos problemas do cantor até conseguir estar “melhor” para voltar ao que sabe fazer de melhor. E ele prova que, mesmo com todas as limitações, ainda consegue chegar lá com o auxílio do piano, como demonstra em Street Of Dreams e This I Love, as duas canções mais emotivas e remetentes à época de suas melodia românticas em Use Your Illusion, só que aprofundada em uma temática de desigualdade social, e não só desilusão sentimental.

Mas quem disse que não tem desse tipo com qualidade também? If the World é uma das minhas favoritas do álbum por justamente entrar nesse caráter em sua letra, mas compor orquestralmente uma atmosfera quase oposta à proposta, digna de trilha sonora de um filme de suspense/espionagem. Olha só, quem diria, apareceu mesmo no Rede de Mentiras de Ridley Scott. Curiosidades à parte, é mais um exemplo da capacidade incrível de variação de tom de Axl, mesmo sem estar em seus melhores dias, e olha que nem foi necessário tanto auxílio instrumental dessa vez, ainda que um dos fortes da canção, como em todas as outras, seja esse acompanhamento, desta vez dos teclados de Reed, ditando o ritmismo conforme a pedida do vocal. Outras músicas na mesma pegada de contraste entre letra e lírica transitadas na condução principal são as intituladas There Was a Time e Prostitute. A primeira é de caráter bem pessoal também do vocalista, aparentemente tratando de seus relacionamentos problemáticos, guiada dentro de uma narrativa de épico histórico em tom digital, mesmo que condicionada pelo vozerio puro, valorizado também na última canção para fechar o sentimento de retorno.

Falando nisso, Riad N’ the Bedouins reintroduz o álbum de maneira semelhante à primeira faixa para dar o clima mais baladeiro da metade final do álbum, sendo essa a mais pensada como “chiclete”, graças aos coros distorcidos de Axl “Aaaaaaaa, aaaaaaaaaa bam bam… aaaaaaa, aaaaaaaaaa a a aaaaaa” dentro do riff principal, que é aquele repetitivo no bom sentido. Sorry vem na mesma linha, propondo um início lento, só que desta vez para capturar no tom atmosférico sombrio de basicamente um desabafo – há línguas que dizem ser sobre a separação da banda – do eu-lírico angustiado por uma pressão do ambiente que circunda, em que ele não consegue mais controlar em tom de um potente hard rock levado a caráter épico pela dosagem adequada do estrondo instrumental. E para fechar o comentário sobre cada música, temos I.R.S partindo do mesmo princípio, mas voltada para o lado tempestade (constante desabafo), e Madagascar para o lado da calmaria (constante angústia). Ambas simbolizando perfeitamente os elementos descritos que diferenciam esse Gun’s objetivo e/ou cadenciado da modernidade com o do passado.

Por mais que hoje esse “passado” tenha retornado e a banda voltado a sua formação original desde 2015, com acréscimos vindos da formação final de Chinese Democracy, isso em nada desfavorece a representatividade do disco, que é um genuíno divisor de águas pensando na sua persistência de existir para promover uma reinvenção de marca ou mesmo de gênero. Pena que demorou tanto para sair que não tenha o impacto cultural desejado, mas olhando no prisma de hoje, Axl Rose em seu quase trabalho solo, mas claro, com a ajuda de uma competente equipe, oferece uma resposta àqueles que dizem que o rock não tem mais a capacidade de se reinventar no moderno, valorizando seus princípios e oferecendo um olhar mais complexo das possibilidades dos recursos tecnológicos em manter vivas as vozes que mudaram o mundo.

Aumenta!: Chinese Democracy, Better, If the World e Sorry
Diminui!: Scraped
Minha Canção Favorita do Álbum: Chinese Democracy

Chinese Democracy
Artista: Guns N’ Roses
País: EUA
Lançamento: 23 de novembro de 2008
Gravadora: Battery Soundtrack, Bennett House, Can Am, Capitol, Cherokee, Electric Lady, IGA, The Palms, Rumbo, Sunset Sound, The Townhouse, The Village, Woodland Ranch
Estilo: Hard Rock, Rock, Rock Industrial, Heavy Metal, Metal Industrial

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