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Crítica| Doctor Who: Choque do Milênio, de Justin Richards

por Rafael Lima
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Equipe: 4º Doutor, Harry Sullivan
Espaço: Reino Unido
Tempo: 1999

Aqueles que viveram o fim dos anos 90 devem lembrar o quão temido e comentado foi o Bug do milênio; uma espécie de “apocalipse virtual”, onde os computadores do planeta não seriam capazes de reconhecer um ano que não começasse com os dígitos 19. Entre as consequências de um evento como esse estavam o caos financeiro generalizado, sistemas de segurança nacional cegos, sistemas de monitoramento aéreo desligados e por ai vai, já que todos os computadores do mundo entenderiam que o ano 2000 era 1900. No fim, apesar do investimento pesado de muitos países, o Bug do Milênio revelou-se muito menos catastrófico do que muitos diziam. Assim, quando peguei Choque do Milênio, romance de Justin Richards que dava sequência ao seu livro Choque No Sistema (que já era uma obra fortemente datada), e vi que a história tratava do Quarto Doutor em uma trama que envolvia o Bug do Milênio, me preparei pra mais uma aventura de natureza datada. Felizmente fui agradavelmente surpreendido, pois Richards parece ter apreendido com os seus erros anteriores, entregando um Techno Thriller menos preso ao período em que foi escrito.

Situada entre The Deadly Assassin e The Face Of Evil, a trama mostra o governo britânico tomando uma série de precauções para evitar a possível catástrofe que pode ser provocada pelo Bug do Milênio. Quando roubos a empresas estatais britânicas começam a ocorrer nas últimas semanas de 1999, o 4º Doutor começa a investigar o caso com a ajuda de seu antigo companion, Harry Sullivan, agora um agente do MI5. À medida em que a investigação avança, a dupla descobre uma conspiração que leva ao coração do governo britânico, onde velhos inimigos estão empenhados em garantir que o Bug do Milênio aconteça.

Choque Do Milênio, sequência de Choque no Sistema (escrito para a editora Virgin), possui um estilo bem semelhante ao primeiro livro sobre os Voracianos, raça alienígena que serve de antagonista para as duas obras. O autor constrói boa parte de sua narrativa na ação (algo bastante comum em sua bibliografia), o que pode ser percebido já na introdução do Doutor na história, que surge resgatando um analista de sistemas no meio de uma invasão armada a um prédio do governo. Mas felizmente, o escritor evita que o livro se torne simplesmente uma correria desenfreada, ao inserir momentos de respiro bem colocados, que servem tanto para construir a tensão da história quanto para fortalecer a dinâmica entre os personagens.

Embora a tecnologia seja um elemento forte da narrativa, o romancista parece muito menos fascinado pelo mundo digital do que em Choque No Sistema. O livro está mais interessado no papel sociopolítico da tecnologia do que nela própria, o que é muito interessante em uma obra com um pé calcado no Thriller de espionagem. Embora o temor do Bug seja algo muito próprio de sua época, os medos trabalhados aqui ainda soam muito atuais. Além disso, o autor consegue contextualizar de forma orgânica e natural a temática do Bug do Milênio para o leitor não familiarizado com o conceito, através de um artigo escrito por Sarah Jane, em uma pequena participação, que explica em uma linguagem leiga as consequências catastróficas que o Bug poderia ter, fazendo-nos compreender por que ele era tão temido. 

O livro possui um excelente ritmo, articulando de forma eficiente os diferentes núcleos da narrativa, como o exército britânico, a CIA, o MI5, o gabinete do primeiro ministro e os Voracianos, com a linha principal que acompanha a investigação conduzida pelo 4º Doutor e por Harry. Nenhum dos personagens é exatamente complexo, mas possuem carisma o bastante para manter o leitor investido em suas jornadas. As sequências de ação são bem descritas, criando tensão sem deixar o leitor confuso sobre o que está havendo, e a ainda ganhando pontos pela criatividade e pelo fator inusitado de algumas passagens, como aquela em que o Time Lord dirige um tanque pelas ruas de Londres.

Como de hábito, Justin Richards consegue transportar os personagens da série com perfeição para as páginas. O 4º Doutor visto aqui é o mesmo personagem sorridente e cheio de energia visto na TV, com a sua personalidade errática se encaixando muito bem com a atmosfera conspiratória e cheia de ação. Mas apesar de o Doutor estar muito bem retratado, Choque Do Milênio é mesmo a história de Harry Sullivan. Devo confessar que nunca fui um grande fã do companion; não que eu desgostasse dele, mas na televisão ele era claramente ofuscado pela química entre o 4º Doutor e Sarah Jane Smith, o que também ocorreu em Choque No Sistema. Mas sem a jornalista por perto, Harry tem mais chance de brilhar. Richards foca na humanidade do Dr. Sullivan, criando um bom contraste com o 4º Doutor mais emocionalmente alheio. Há uma passagem especialmente ilustrativa a esse respeito, onde o Doutor se esquece completamente que é noite de Natal, e é presenteado por Harry com um presente simples, mas significativo, fazendo questão de brindar com o amigo.

O autor também faz um bom trabalho com os personagens originais, não só fazendo o leitor se preocupar (e em alguns casos lamentar) por seus destinos, mas também nos fornecendo a perspectiva da pessoa comum diante de uma trama cheia de alienígenas e conspirações internacionais, sendo a jovem empregada de Harry, Sylvia, o maior exemplo. Infelizmente, os Voracianos — raça de androides alienígenas que foi o grande destaque em sua história de estreia, destacando-se pelo funcionamento de sua sociedade corporativista e pelo conflito entre lógica e instinto que enfrentavam — surgem bem menos interessantes aqui. Entendo que o autor provavelmente ficou com medo de “repetir a piada”, inclusive tornando os Voracianos bem menos presentes na narrativa do que em sua aparição anterior, o que faz sentido com a ação mais sutil que eles tomam aqui, mas tal abordagem acabou por tornar estes vilões mais genéricos. 

Choque Do Milênio demonstra a evolução de Justin Richards como escritor ao lidar de forma muito mais assertiva com os elementos do Techno Thriller do que em sua investida anterior em Choque no Sistema. Ele apresenta um thriller de espionagem divertido e cheio de ação, que com um bom ritmo e interessantes reviravoltas, mantém o leitor interessado até o desfecho. Com antagonistas melhor trabalhados, e uma conclusão melhor desenvolvida, o livro poderia ter ficado entre os melhores trabalhos de Richards para a série. Mas se isso não ocorre, o livro também fica longe de ficar entre os trabalhos mais fracos do autor, portanto, valendo a leitura.

Doctor Who: Choque Do Milênio (Millenium Shock)Reino Unido, 10 de Maio de 1999
Autor: Justin Richards
BBC Past Doctor Adventures #22
Publicação: BBC Books
282 Páginas

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