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Crítica | Chrononauts

por Ritter Fan
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Viagem no tempo é um dos artifícios mais excitantes da ficção científica. Basta alguns segundos para lembrarmos de obras maravilhosas que lidam com o assunto das mais diversas maneiras, como a Trilogia De Volta para o Futuro, a franquia O Exterminador do Futuro, a franquia Planeta dos MacacosOs Doze Macacos (além do curta que o baseou e a série de TV), Looper, Efeito Borboleta, Life on MarsDoctor Who e uma verdadeira infinidade de outras. Nos quadrinhos é a mesma coisa, com as viagens temporais basicamente fazendo parte do dia-a-dia dos dois grandes universos mainstreamDC Comics e Marvel Comics – e, também, nas editoras independentes. E, claro, como não falar da literatura, com obras seminais de ficção científica galgadas nesse fantástico recurso, como, claro, a inesquecível e uma das responsáveis por colocar a viagem no tempo no mapa, A Máquina do Tempo, de H.G. Wells.

Talvez seja perfeitamente correto dizer que, se tem viagem no tempo, então no mínimo sobrancelhas de curiosidade serão levantadas, mesmo que o resultado final desaponte, caso em que dá até para terminar de balançar a cabeça exclamando “ah, mas pelo menos tem viagem no tempo!”. Mark Millar, claro, sabe disso e, junto com Sean Gordon Murphy, criou Chrononauts que, como o título deixa muito claro, lida com exploradores temporais, ou “crononautas”, que usam trajes carregados por baterias que duram 100 anos e que lhes dão a habilidade de pular de era em era para testemunhar os mais importantes eventos da humanidade. Ou, pelo menos, era esse o plano original dos inventores da tecnologia, Corbin Quinn e Danny Reilly, amigos gênios que, no frigir dos ovos e pela mais completa falta de um adjetivo melhor, são dois completos babacas que só pensam neles mesmos.

Quando Quinn, programado para fazer uma viagem inaugural ao ano de 1492, para filmar a descoberta da América por Cristóvão Colombo, acaba parando em Samarcanda (hoje no Uzbequistão), em 1504, seu amigo Reilly corre em seu resgate. Ao chegar lá, para sua surpresa, ele descobre que Quinn usou sua genialidade e a tecnologia à sua disposição para tornar-se quase que uma entidade omnipresente nas mais variadas épocas e lugares, sempre com o “científico” objetivo de amealhar aquilo que o Zeca Urubu, inimigo-mor do Pica-Pau, sempre desejou: “mulheres, iates, dinheiro…”. Vendo a bagunça que o amigo criou na linha temporal, Reilly então… entra também na brincadeira, não resistindo à tentação de viver como rei. Como disse, dois babacas…

E, com a premissa estabelecida, Mark Millar usa praticamente a integralidade das quatro curtas edições da minissérie para fazer os dois viajarem freneticamente pelo tempo primeiro para recolher riquezas e, em um segundo momento, para fugir da equipe do presente que é enviada para caçá-los. No pior melhor estilo Millar de ser, nossos “heróis” teletransportam-se para dezenas de épocas e lugares, na base de, pelo menos (e bem por baixo!), duas vezes por página em uma ensandecida “corrida maluca” que mais parece uma versão absurdamente estendida daquela sequência inicial em X-Men 2 em que Noturno invade a Casa Branca. Não dá para dizer exatamente que essa repetição infindável cansa, pois, quando o negócio começa a realmente ficar chato, tudo acaba como se nada tivesse acontecido e como se mexer na linha temporal não tivesse qualquer efeito borboleta ou mesmo criasse realidades paralelas. Em suma: Quinn e Reilly tocam o terror no espaço-tempo, mas só têm o bônus, nunca o ônus, o que só aumenta exponencialmente o ego inflado e insuportável dos dois.

Esquerda: Samarcanda, em 1504. Direita: em algum lugar, há 65 milhões de anos.

Millar falha em criar qualquer senso de perigo para seus protagonistas, mesmo quando eles estão diante de situações impossíveis. Além disso, em termos de desenvolvimento de personagens, é como se o autor não fizesse ideia do que é isso. Eles começam e acabam da mesma maneira, mesmo considerando o que Quinn acaba fazendo ao final por sugestão de Reilly, que tem o objetivo de redimi-lo perante o leitor, mas que, no meu caso, só serviu para mostrar o quão o sujeito é egoísta e tão genial a ponto de ser burro por não ter pensado nisso antes.

A grande verdade, sejamos francos, é que, assim como diversas obras do Millarworld, de Mark Millar, Chrononauts é um esboço de proposta de roteiro de filme ou série de TV, com o objetivo de ser vendido e adaptado para as telonas ou telinhas. Nada mais, nada menos. Para que trabalhar em caracterização e desenvolvimento se o que importa mesmo é a estrutura de storyboard para mostrar para potenciais compradores? Para que lidar com uma ou duas viagens no tempo se é muito mais “legal” fazer os personagens pipocarem dezenas de vezes, desde o momento em que o primeiro animal aquático saiu das águas de uma Terra em formação até a década de 30 em Nova York? Para que elaborar detalhes sobre a tecnologia e seus efeitos na linha temporal se isso é papel de um futuro roteirista? Para que fazer mais do que o básico do básico e ainda ganhar dinheiro vendendo isso para leitores incautos? Não tenho dúvidas que é esse o raciocínio de Millar e que, confesso, não tenho como não achar brilhante em termos de marketing.

A grande vantagem de Chrononauts está mesmo na arte de Sean Gordon Murphy, que retira a obra do lugar comum a que estaria fadada se o desenhista fosse menos hábil. O artista tem um domínio de sua arte que é gostoso de se apreciar. Seus rostos são uma mistura de realismo com caricaturas que funcionam muito bem para identificar cada personagem – e nem haveria necessidade disso, pois só há dois personagens verdadeiramente identificáveis de toda forma – e sua capacidade criativa para desenhar a variedade de eras que o roteiro de Millar exige é de se tirar o chapéu. Com a mesma facilidade com que lida com Samarcanda no século XVI, ele desenha a Nova York dos gangsteres depois do crash da bolsa, passando por dinossauros, samurais e uma infinidade de armadilhas visuais que só acrescentam ao histrionismo de Millar e que qualquer leitor pode muito facilmente visualizar em uma produção cinematográfica futura, com generoso uso de CGI, logicamente. Mas, mesmo em meio a essa confusão infernal, os traços de Murphy jamais confundem o leitor, permitindo uma boa fluência de leitura e até algumas pausas para a apreciação dos detalhes e dos easter-eggs que ele consegue enxertar, como um DeLorean estacionado aqui ou uma menção enviesada a Nimitz – De Volta ao Inferno ali.

Chrononauts é raso como o proverbial pires, básico como os roteiros de filmes oitentistas de pancadaria pura e especialmente criado para um dia sair das páginas dos quadrinhos. Se o leitor não quiser mais do que não mais do que uma hora de divertimento sci-fi sobre viagem no tempo que esquecerá no minuto seguinte, trata-se de uma boa pedida. Se, porém, o que procura é algo com um mínimo de substância, como os bons exemplares do gênero que mencionei no começo da crítica, então o melhor é fugir da minissérie e, talvez, enfronhar-se na maravilhosa – e tematicamente semelhante – Black Science, de Rick Remender, pela mesma editora.

Chrononauts (EUA, 2015)
Contendo: Chrononauts #1 a 4
Roteiro: Mark Millar
Arte: Sean Gordon Murphy
Cores: Matt Hollingsworth
Letras: Chris Eliopoulos
Editora original: Image Comics
Data original de publicação: março a junho de 2015
Editora no Brasil: não publicada à data de lançamento da presente crítica
Páginas: 118 (encadernado americano)

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