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Crítica | Cidade de Deus

por Guilherme Coral
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estrelas 5,0

Um dos marcos finais do cinema brasileiro da chamada Retomada, Cidade de Deus é um dos maiores sucessos comerciais e críticos do cinema nacional. Trata-se de uma obra que muito herda de filmes como Os Bons Companheiros, Scarface e Pulp Fiction, com alguns tons e estruturas narrativas similares, mas que, ao mesmo tempo, assume um caráter único por meio da representação nua e crua de um dos lados do quadro social do Brasil. Nomeado a quatro estatuetas do Oscar (direção, roteiro adaptado, montagem e fotografia), temos aqui o que certamente se classifica como um dos melhores filmes brasileiros, mas precisamos entender o que faz dele uma obra tão boa assim.

A trama gira em torno de Buscapé (Alexandre Rodrigues), um morador da Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, que desde pequeno fora um espectador de camarote da violência que assola a favela em questão. Através de uma câmera que gira em torno do personagem, o relógio volta no tempo e somos levados aos anos 1960, quando tudo ainda era diferente e a violência dentro da comunidade não alcançava os níveis que vemos no desfecho da obra. A partir daí, em uma narrativa não-linear, acompanhamos a história dos criminosos da Cidade de Deus, do Trio Ternura a Zé Pequeno (Leandro Firmino).

Curiosamente, um dos ingredientes para a fórmula do sucesso de Cidade de Deus é a escolha de Fernando Meirelles em trabalhar com atores ainda inexperientes, convocados de favelas do Rio de Janeiro, o que garante uma autenticidade ao que vemos em tela. Há uma sinceridade na atuação de cada um deles, desde Dadinho até o protagonista. Fernando, naturalmente, não simplesmente os jogou em cena; uma extensa preparação misturada a teste de elenco foi realizada, na qual uma escola de atores foi formada e que, posteriormente, daria origem ao Nós do Morro e o Cinema Nosso, que, desde então, já formou competentes profissionais na área do cinema.

Naturalmente, nem todos foram marinheiros de primeira viagem aqui. Matheus Nachtergaele, no papel de Cenoura, é um dos exemplos. Meirelles, que não queria trabalhar com atores renomados, encontrou no ator uma complicação: o recente sucesso de Auto da Compadecida, que Nachtergaele protagonizara. A promessa do ator de “sumir” do filme a não ser por sua atuação, porém, foi cumprida, não há Matheus em Cidade de Deus, apenas Cenoura – um trabalho autêntico por excelência que não só não quebrou o imagético do filme, como contribuiu para ele, ao passo que o personagem não destoa dos outros em nenhum aspecto.

Resumir o sucesso da obra simplesmente à direção de atores, contudo, seria uma grande injustiça. O roteiro de Bráulio Mantovani faz um verdadeiro milagre da adaptação ao colocar no cinema um livro com mais de duzentos personagens sem fazê-lo soar apressado ou arrastado. Dito isso, a fim de transmitir uma maior fluidez, o longa assume uma estrutura capitular – pulamos de bandido em bandido enquanto a história da comunidade é formada.  Unindo esses episódios temos Buscapé e sua narração em off (além da presença na tela), que impedem uma quebra de ritmo e constrói a ideia de que está tudo conectado: os eventos mostrados no início do filme diretamente impactam o que vemos em seu desfecho. A coesão é garantida por esses recursos simples, mas magistralmente utilizados.

Naturalmente, a montagem de Daniel Rezende caminha lado a lado com o roteiro, fazendo o necessário para que o dinamismo constante de Cidade de Deus seja mantido. Temos, aqui, um filme de 130 minutos que não para em momento algum. Cada transição entre os capítulos é realizada de forma orgânica, fluida. Para isso é mantida uma linearidade nessa narrativa não-linear – enquanto a história progride naturalmente na passagem dos anos, ela vai e volta a fim de nos trazer um olhar dedicado sobre determinados personagens. Flashbacks e elipses temporais são constantes e mais de uma vez um dos indivíduos retratados é deixado de lado, somente para ser abordado posteriormente. A narração em off de Buscapé aqui se faz essencial, nos dá vislumbres do que veremos depois, mantendo-nos curiosos acerca do papel de cada peça nesse complexo tabuleiro.

A direção de Meirelles é o pilar que mantém tudo isso unido, com uma decupagem que nos transporta para dentro desse cenário, ora com um olhar externo dos acontecimentos, quase documental, ora com closes em seus personagens, garantindo a humanidade em cada um deles. Sentimo-nos como se estivéssemos ali no meio daquele problemático ambiente e a sensação de perigo nos assola, transmitindo um pungente naturalismo à narrativa, que chega a nos deixar com um nó no estômago ao término da projeção. Buscapé, na verdade, somos nós, perdidos dentro daquele violento contexto, buscando entender o que se passa e colocar justamente um fotógrafo como protagonista é a marca maior disso: o olhar externo dentro do mundo da criminalidade.

Ao lado da direção temos a emblemática fotografia de César Charlone, que já nos planos iniciais tira o nosso fôlego – não é à toa que o plano circular do início do filme se tornou tão famoso. Charlone apresenta um verdadeiro domínio de sua arte, sabendo trabalhar de forma impecável mesmo nas diversas cenas noturnas. Sua retratação da Cidade de Deus apenas solidifica o naturalismo mencionado anteriormente com uma paleta de cores que apenas realça a frieza dos criminosos dali – os tons quentes dos anos 60 vão abrindo espaço para cores mais frias, assumindo o auge após a morte de Bené (Phellipe Haagensen), que é para Zé Pequeno o que Manny era para Tony Montana. Em momento algum sentimos uma segurança ao assistir a obra; temos a perfeita noção de que, a qualquer momento, algo pode dar errado.

Por tais motivos, desde seu lançamento Cidade de Deus influenciou centenas de outras obras, não somente no campo audiovisual – um belo exemplo disso é a graphic-novel Coringa, de Brian Azzarello, que conta com um quadro inspirado em Dadinho e suas tendências homicidas. Fernando Meirelles nos traz um longa metragem que consegue nos cativar completamente, ao mesmo tempo que coloca em nós uma inegável angústia por meio da pesada atmosfera que constrói, encerrando seu filme com um tom sombrio mascarado de otimismo, que apenas reflete a realidade do quadro social do Rio de Janeiro, que, por si só, já nos deixa em constante apreensão.

Cidade de Deus – Brasil, 2002
Direção:
Fernando Meirelles, Kátia Lund
Roteiro: Bráulio Mantovani (baseado no livro de Paulo Lins)
Elenco: Alexandre Rodrigues, Matheus Nachtergaele, Leandro Firmino, Phellipe Haagensen, Douglas Silva, Jonathan Haagensen, Seu Jorge
Duração: 130 min.

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