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Crítica | Cidade Invisível – 1ª Temporada

por Ritter Fan
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Uma das mais fantásticas experiências que eu já tive nos quadrinhos foi a leitura da já encerrada Fábulas, série criada por Bill Willingham para a infelizmente finada Vertigo Comics cuja primeira edição foi lançada 2002 que coloca os mais diversos personagens fabulescos vivendo disfarçados entre os humanos depois que eles são obrigados a abandonar suas terras originais. E, desde então, considerando a quantidade de obras audiovisuais baseadas em quadrinhos que ganhou especial atenção basicamente nos últimos 20 anos, venho pacientemente esperando uma versão cinematográfica ou, de preferência, televisiva da HQ.

E Cidade Invisível, projeto brasileiro do Netflix capitaneado por Carlos Saldanha, é, inegavelmente, uma bem-vinda versão de Fábulas, só que concentrada nos personagens do folclore brasileiro, dentre eles a Cuca, o Curupira, o Saci e o Boto Cor-de-Rosa, todos “morando entre nós”. Se o conceito em si é fascinante e é sempre bom ver a mitologia brasileira ganhando destaque fora de clássicos como O Sítio do Pica-Pau Amarelo, O Saci e outras raras obras desse naipe, por outro é inegável que a série arrisca pouco em seus sete breve episódios, preferindo seguir um caminho talvez seguro demais que acaba detraindo de seu potencial.

A estrutura é policialesca no estilo whodunit, com o recém-viúvo policial ambiental Eric Alves (Marco Pigossi) aproveitando-se de uma oportunidade que envolve a descoberta de um boto-cor-rosa morto na praia cujo corpo reverte para a forma humana de lenda, para forçar uma investigação na floresta em que sua esposa morrera em circunstâncias não-tão-bem explicadas e que é cobiçada por uma construtora aparentemente inescrupulosa. Na medida em que o obsessivo policial mergulha no mistério, mais criaturas mitológicas ele acaba encontrando, com a Cuca, vivida por Alessandra Negrini sendo trabalhada e enquadrada como vilã, mas com ele mesmo revisitando seu passado e compreendendo mais sobre si e sobre sua filha Luna (Manu Dieguez).

Apesar de uma premissa burocrática e batida, o conceito poderia ganhar excelente desenvolvimento a partir dela, mas pelo menos a 1ª temporada mantém-se excessivamente focada em Eric, algo que é compreensível, mas não ao ponto de tornar todos os demais personagens, inclusive sua parceira de trabalho Márcia (Áurea Maranhão), em instrumentos de conveniência que são usados unicamente quando são necessários, sem ganhar vida própria ou sequer algum tipo de desenvolvimento maior do que o que certos arquétipos audiovisuais determinam. Em outras palavras, especialmente os personagens mitológicos que cercam Eric com intenções diversas existem de maneira estática e monolítica, sendo o que são do começo ao fim, sem quebrarem a unidimensionalidade. Mesmo o simpaticíssimo Saci de Wesley Guimarães e a sinistra Cuca da já citada Negrini são subaproveitados, ficando muito mais à deriva na narrativa como “enfeites de cenário” do que como personagens relacionáveis para além do que eles são.

Tenho para mim que foi a escolha de se manter o maior número possível de segredos pelo maior tempo possível que tenha ajudado nesse escanteamento das criaturas mitológicas, pois não me pareceu terem sido escolhas de orçamento, já que o uso de CGI é esparso e não exatamente essencial para que acreditemos no que a história nos pede. A estratégia de soltar informações a conta-gotas e o uso de revelações surpresa – que nem são tão surpreendentes assim – com o emprego de flashbacks para então explicar tudo talvez detalhadamente demais não só quebra bastante a fluidez da narrativa, como transforma Eric em um protagonista consideravelmente antipático cuja função é mais dirigir entre a cidade e a floresta com cara de poucos amigos do que realmente parecer alguém que está literalmente descobrindo a tal “cidade invisível” debaixo de seu nariz. Pigossi reage a revelações extraordinárias e inacreditáveis da mesma maneira que faz seu personagem demonstrar amor pela filha pequena ou pela simpática avó Januária (Thaia Perez).

E não é nem o caso de o ator ser inábil em sua profissão, pois não creio que esse seja a totalidade do problema (apenas parte, não tenham dúvida). Desconfio que os roteiros não foram hábeis em criar um personagem que fosse capaz de criar conexões com o público, mais parecendo um policial genérico com traumas do passado que não tem muita ideia do que está fazendo. Considerando que a temporada acaba de maneira ao mesmo tempo a dar um encerramento de arco à história, o que é ótimo para quem quiser desistir por aqui, e abrir a possibilidade de uma continuação talvez mais focada na mitologia, dando espaço de verdade para os personagens fantásticos saírem da estrutura formular, o que, claro, é ótimo para quem quiser continuar, não fica a sensação de desperdício de tempo, pelo menos.

A 1ª temporada de Cidade Invisível, apesar de todos os pesares, pelo menos cumpre a função de dar vontade de ver mais dos personagens que povoam a série ou pelo menos pesquisar sobre os mais desconhecidos. Roteiros menos amarrados em uma trama simplista e investimento efetivo no folclore de maneira a transformar esses personagens em mais do que só pálidos reflexos do que eles poderiam ser fariam muito bem à série e à difusão da mitologia brasileira tanto no próprio país, quanto no restante do mundo. Se continuar desse jeito acanhado, será melhor recorrer à Fábulas mesmo, já que é material de qualidade garantida.

Cidade Invisível – 1ª Temporada (Brasil, 05 de fevereiro de 2021)
Criação: Carlos Saldanha, baseado em história de Raphael Draccon e Carolina Munhóz
Direção: Luis Carone, Julia Jordão
Roteiro: Mirna Nogueira, Rodrigo Batista, Ludmila Naves, Antônio Arruda, Regina Negrini, Felipe Sant’Angelo, Marcos Borges
Elenco: Marco Pigossi, Alessandra Negrini, Julia Konrad, Victor Sparapane, José Dumont, Samuel de Assis, Wesley Guimarães, Fábio Lago, Tainá Medina, Thaia Perez, Rafael Sieg, Jessica Cores, Jimmy London, Manu Dieguez, Áurea Maranhão
Duração: 252 min. (sete episódios)

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