Home LiteraturaAcadêmico/Jornalístico Crítica | Cinema em Carne Viva: David Cronenberg, de Tadeu Capistrano

Crítica | Cinema em Carne Viva: David Cronenberg, de Tadeu Capistrano

por Leonardo Campos
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David Cronenberg é um cineasta de forte presença no sistema de produção contemporâneo e em 2011, ganhou uma mostra organizada pelo Fundação Cultural do Banco do Brasil, supervisionada pelo professor e pesquisador Tadeu Capistrano, da UFRJ, responsável também pelo livro que acompanhou o evento, uma seleção de textos com nomes pomposos do meio acadêmico brasileiro, reflexões voltadas aos temas comuns na cinematográfica do realizador canadense, isto é, o corpo e suas transformações por meio da tecnologia e mutações de identidade. Cinema em Carne Viva: David Cronenberg se apresenta como uma luxuosa publicação, dividida de maneira didática e bastante atraente. Primeiro, temos uma breve apresentação que nos explica as motivações para a escolha do diretor como tema de uma mostra. Logo mais, Capistrano reflete de maneira geral os temas em As Entranhas do Cinema: Abrindo Cronenberg, antecipação para uma entrevista concedida por um veículo de comunicação de Toronto, uma biografia ágil, seguida de um panorama comentado de seus filmes até 2011 e a sequência de 13 artigos, finalizados com a tradução de todo o material para língua inglesa. Ao longo de suas 184 páginas, o livro com capa e projeto editorial de Mariana Mansur e Bernardo Oliveira nos faz mergulhar neste cinema singular, questionador e cheio de complexidades, longe de ser apenas mero entretenimento ligeiro.

Veiculado pela WSET Editora, Cinema em Carne Viva: David Cronenberg abre com a justificativa que motivou os idealizadores da mostra que contemplou 18 filmes e 01 curta-metragem em sua programação. O intuito, segundo exposto, é permitir aos cidadãos brasileiros o contato com obras cinematográficas que retratam temáticas consideradas universais e atemporais. Para os realizadores, trabalhos assim oportunizam ao público acompanhar a atualidade das propostas tematizadas pelo cinema do diretor canadense que faz a diferença no sistema há quase quatro décadas. Os seus filmes revelam os impactos socioculturais das relações entre imagem, corpo e tecnologia e a sua discussão é de grande empenho para o fortalecimento do nosso campo de pensamento, ainda menos intenso do que deveria ser, conforme opinião dos editores na apresentação do material. A mostra buscou, então, atualizar os temas debatidos pelo cineasta, tendo como direcionamento, os artigos acadêmicos que trazem a sua cinematografia para dialogar com textos filosóficos do campo da tecnologia, cibercultura e da comunicação.

No prefácio de Tadeu Capistrano, encontramos logo de cara uma sofisticada e elucidativa reflexão preambular sobre a importância do cineasta. Professor do Departamento de História da Arte e do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRJ, o autor aponta que o cinema de Cronenberg importa pela forma como propõe o debate da tríade corpo, imagem e tecnologia, num conjunto de narrativas que rumina o horror do mundo atual e o devolve por meio de reflexões artísticas. No universo biopolítico do realizador, há quase sempre a onipotência do “poder branco”, os anseios em torno da medicina e um cientista que ao operar de maneira insana os campos da genética, da bioquímica e da neurologia, acaba por transformar o mundo num lugar assustador. Suas imagens vanguardistas teorizam sobre o lugar dos humanos no contemporâneo, por intermédio de uma estética que sempre “passa dos limites”, construída por meio da assepsia da linguagem cinematográfica, precisa e cirúrgica em seus filmes.

Neste cinema conectado com as ideias de Marshal McLuhan e seus debates sobre corpo, mídia e espetáculo, encontramos indivíduos envoltos numa redoma de desordem mental e deformidade corporal, traços reforçados na entrevista com o cineasta, realizada por Thom Ernst para a Toronto Magazine, material concedido para a publicação como adicional para antecipar os artigos acadêmicos e ensaios que completam o pacote intelectual. Na conversa fluente e dinâmica, David Cronenberg conta, diante de uma série de perguntas bem fundamentadas do jornalista, detalhes de seu modo de operação e também dos principais pontos que refletem toda a sua trajetória enquanto cineasta. Ele diz que não usa o medo para assustar, mas que na verdade o medo é que o usa para manipular sensações diante de suas narrativas. O canadense que também escreveu muitas de suas histórias, flerta com o cinema de Hitchcock e a sua necessidade de suposto controle absoluto sobre as coisas, traçando algumas críticas ao realizador considerado o “mestre do suspense”. De volta ao medo, Cronenberg aponta que é o grande intensificador de sua permanência ainda na atualidade.

Ter medo o faz criar, refletir e projetar suas angústias em forma de filme. E o assunto acaba indo para a seara da violência, tópico que conforme o diretor, é milenar e sempre esteve associado ao “fazer artístico” e por isso, não é uma exclusividade de representação do seu cinema, mas da própria história da humanidade. No papo, ainda há um debate sobre as atualizações de seus temas, propostas para refilmagens direcionadas ao público mais atual e a questão da censura. Sobre o assunto, de maneira muito firme, Cronenberg reforça que a civilização toda é uma forma de repressão do paradigma freudiano e a nossa relação com a arte é muito instável e é assim que deve ser. Ao apelar para o que se encontra suprimido e reprimido, a arte questiona, reflete, causa incomodo e nos tira da tal zona de conforto que muito se fala por aí nos discursos motivacionais. Logo adiante, uma breve biografia do canadense é apresentada e os seus filmes são enumerados por ordem de lançamento, em sinopses críticas, cheia de comentários entre um detalhe mais básico e outro de explicação do conteúdo das histórias. É a antecipação para a parte mais complexa do livro, sequenciada por 13 artigos que analisam a obra geral do cineasta.

Em O Bio-Horror de David Cronenberg, de Laura Canépa, o texto reflete sobre o horror propiciado pela vulnerabilidade dos corpos humanos, numa cultura que acredita na separação entre a mente e a nossa estrutura corpórea. No desenvolvimento de David Cronenberg e o cinema biotecnológico, a pesquisadora Ivana Bentes debate ExistenZ, hedonismo, o pesadelo do homem diante da tecnologia que aproxima e repele, além da necessidade de construirmos novos corpos para sustentarmos os desejos oriundos deste panorama cada vez mais evoluído. Para a autora, em sua iconografia, temos o vermelho do sangue e da carne, parte de uma cinematografia que trabalha no limite do repugnante. Em Você Não é Você: Corpo e Identidade nos Filmes de David Cronenberg, o professor Fábio Fernandes flerta com a mudança da perspectiva gore para as demais estratégias narrativas adotadas com o avanço do diretor nos esquemas de produção, tendo também o mesmo filme analisado por Ivana Bentes para questionar se ainda estamos no “jogo”, isto é, que Cronenberg é o cineasta da dúvida constante.

No artigo Teratologia Cronenberguiana, a pesquisadora Ieda Tucherman analisa a obra de Cronenberg e a relaciona com Ésquilo, Goya e Mary Shelley, no texto talvez mais panorâmico da publicação. Em Sobre Médicos, Monstros e Tecnologias: Angústias Contemporâneas, Lilian Krakowski reflete sobre a capacidade do artista em captar de modo não consciente e transformar em criatividade, as tensões e questões que demarcam o seu momento histórico. No interessante O Cinema Como Negativo (Duplo) da Psicanálise, Adalberto Muller expõe um seguinte questionamento: se Freud estivesse vivo para ver Spider – Desafie a Sua Mente? Provavelmente, novas propostas e questões para a psicanálise iriam surgir deste contato. Em O Olho e O Cérebro: O Cinema Psíquico de David Cronenberg, de Erick Fllinto, a simbiose entre corpo e mente é analisada sob a estrutura de A Hora Da Zona Morta e Scanners – Sua Mente Pode Destruir, artigo seguido de O Cinema Maquínico de David Cronenberg, Mistérios e Paixões, texto assinado por Maria Cristina Franco Ferraz, abordagem que entrelaça máquina literária, política e erótica, assuntos tratados em pormenores. Interessante que todos os artigos, mesmo tratando de problemas complexos, diluem-se em exposições tranquilas e sem códigos herméticos de leitura.

O polêmico Crash – Estranhos Prazeres é o foco de As Engrenagens Lubrificadas: Cronenberg, Automóveis e Corpos Superexcitados, de Guillermo Giucci, filme que segundo o autor, flerta com a dualidade entre repulsa e beleza e sendo uma espécie de versão canadense de Saló ou Os 120 Dias de Sodoma, de Pasolini, reflexão que até faz conexões com Ulisses, da Odisseia de Homero, e suas cicatrizes tratadas numa breve, mas formidável comparação. Em Comutações, Contatos: Cenas de Violência em David Cronenberg, o autor Evando Nascimento fala sobre a força motriz que movimenta os ótimos Marcas da Violência e Senhores do Crime, tendo a filosofia de Deleuze como um dos direcionamentos de análise. Próximo ao desfecho, o livro os complexos, mas interessantes Da Des-organicidade: Devires Cinematográfico-Pictóricos, de Eliska Altman, e O Corpo Estranho: Orgânico, Demasiadamente Orgânico, de Paula Sibilia. O primeiro trata das intervenções tecnológicas no corpo, sendo o futuro da humanidade previsto numa atmosfera de pesadelo. Na análise, a autora coloca ExistenZ como herdeiro direto de Videodrome – A Síndrome do Vídeo, tanto em sua temática quanto em sua dimensão. Já no segundo, o corpo humano é refletido como um lugar palco de estranhezas, conjunto de vísceras que incrivelmente vivem, pensam e sentem, algo abordado do jeito ilustre de narrar por David Cronenberg em sua pulsante e engajada cinematografia, persona tratada nesta publicação com o devido respeito, analisado cuidadosamente por pensadores coesos e coerentes.

Cinema em Carne Viva: David Cronenberg (Brasil, 2011)
Autor: Tadeu Capistrano (org.)
Editora: WSET Editora
Páginas: 184

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