Mais de dois anos depois de Telemetria Fugitiva, sexto livro da série literária Diários de um Robô-Assassino, e primeiro não cronológico, Martha Wells retorna ao fascinante universo em algum momento em futuro distante da humanidade em que a exploração espacial é comandada por megacorporações e androides são lugar-comum com Colapso Sistêmico (minha tradução livre para System Collapse), que retoma para narrativa a partir do fim de Efeito de Rede. E, semelhante ao referido livro, que também foi o primeiro em tamanho de romance e não novela, o sétimo capítulo da jornada do rabugento, mas simpático robô que é viciado em séries de TV e que se torna cada vez mais humano é mais “corpulento”, por assim dizer, sendo facilmente a segunda mais longa história escrita por Wells na série.
Como visto em Efeito de Rede, o Robô-Assassino decide permanecer com T.E.D. (cujo nome “real” é Periélio, ou Peri, para “seus” humanos), e, ainda no planeta em que eles descobriram colonos contaminados, a corporação Barish-Estranza, com diversas Unidades de Segurança, chega para complicar a questão e tentar, a todo custo, tomar posse dos valiosos, mas ao mesmo tempo ilegais, resquícios alienígenas. Mas mais do que uma corrida por tecnologia proibida, Colapso Sistêmico é sobre o resgate de colonos há décadas escondidos em um dos polos do planeta, perto de uma estrutura mineradora, além de ser um belo estudo sobre saúde mental abordado a partir de problemas internos que o Robô-Assassino passa a ter, verdadeiras versões robóticas de ataques de ansiedade e de pânico. Em outras palavras, Wells lida com um assunto macro relacionado com a colonização e, mais do que isso, a exploração de trabalho quase escravo por empresas inclementes e sem rosto, mas sem perder de vista o aspecto micro e pessoal que é parte do desenvolvimento do androide em sua busca de identidade e, mesmo sem ele conscientemente querer, humanidade.
A autora mostra-se mais confiante aqui do que em Efeito de Rede com esse formato mais alongado. E sim, eu sei que Wells têm diversos romances anteriores bem mais longos do que esse ou o livro #5, pelo que não é uma questão de experiência, mas sim de adaptação e de se desafiar, já que ela muito claramente criou seu Diários de um Robô-Assassino para ser lido em doses homeopáticas. Mas Colapso Sistêmico é, definitivamente, um tiro muito bem dado no alvo que cria situações lógicas e naturais para justificar um número maior de páginas. Não só a interação entre os humanos que fazem parte da tripulação de Peri com Peri e Robô-Assassino funciona bem, sem soluços, como toda a inserção dos novos e ariscos colonos criando em partes iguais tensão e mistério. E, claro, a Barish-Estranza, como a segunda entidade vilanesca da série, mostra-se igualmente ou até pior do que a GrayCris em sua sana por tecnologia e pela exploração de mão de obra humana barata nos confins do espaço conhecido. Evidentemente que a manutenção da estrutura do primeiro arco dos livros, ou seja, um grupo de exploradores bonzinhos tendo que enfrentar uma corporação maligna é um tanto quanto repetitiva e pouco original, mas a presença de Peri, com todo o seu poderoso arsenal cibernético, cria o diferencial.
Mas o que cria mesmo o diferencial é a progressão emocional do protagonista. O Robô-Assassino, mesmo que nunca realmente tenha sido um robô frio e distante, já que nós, leitores, o conhecemos auto-hackeado e consumidor de séries de TV, aproxima-se a passos largos de ser uma criatura que poderia ser talvez rotulada de próximo passo na evolução da humanidade, em que os humanos aprimorados com inserção de implantes cibernéticos como Gurathin ficam muito claramente atrás dos androides aprimorados com a inserção de “implantes humanos”. Ver o Robô-Assassino, ,surpreso, diagnosticar-se como tendo ataques de pânico que afetam seu funcionamento e surpreender-se com isso é como testemunhar uma versão de Roy Batty frustrando-se por não poder viver por mais tempo, quase que literalmente como um Blade Runner às avessas, já que a pegada verdadeiramente noir e sombria do clássico de Ridley Scott inexiste na série literária sob análise.
Colapso Sistêmico, portanto, representa um belo avanço narrativo que desenvolve sobremaneira seu protagonista em uma história repleta de ação e novos e velhos personagens em um segundo capítulo do segundo arco macro de Martha Wells nesse universo. Um oitavo romance (ou talvez novela, não se sabe ainda) foi anunciado para meados de 2026 e será particularmente interessante ver para onde a autora levará seu cada vez menos robótico Robô-Assassino.
Colapso Sistêmico (System Collapse – EUA, 2023)
Autoria: Martha Wells
Editora original: Tor.com
Data original de publicação: 14 de novembro de 2023
Páginas: 245