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Crítica | Colette

por Ritter Fan
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É a mão que segura a caneta que conta a história.

Existe uma linha fina, quase invisível, que separa as obras que existem com o objetivo único de diretamente conscientizar as pessoas sobre uma determinada situação, seja ela de qualquer natureza e obras que alcançam o mesmo objetivo sem se valer de pregação direta, trabalhando seu ponto de vista dentro de uma visão mais ampla e orgânica. Como dizem por aí, “contexto é tudo” e, realmente, ele é, estabelecendo não só o momento propício para determinado discurso, como também para fazer com que o discurso impregne seu vetor, de maneira que uma coisa se confunda naturalmente com a outra.

A cinebiografia da romancista, artista e jornalista francesa Sidonie-Gabrielle Colette – ou só Colette, como ficou conhecida – é uma dessas obras que abordam uma pletora de ideias em um conjunto harmônico e fascinante sob a batuta de Wash Westmoreland, de Para Sempre Alice e Meus 15 Anos, que também co-escreveu o roteiro com Richard Glatzer e Rebecca Lenkiewicz. Focando no começo da carreira da futura autora, vivida por Keira Knightley, vemos rapidamente suas raízes camponesas, na região da Borgonha, e seu casamento com Henry Gauthier-Villars (Dominic West), então já um autor conhecido em Paris, que escreve sob o nom-de-plume Willy e que a leva para a cidade grande. Grande parte do que vem a seguir é focado na relação dos dois, ele o típico cafajeste, mas com ideias e conceitos interessantemente progressistas e ela adaptando-se a uma realidade que não imaginava, literalmente desabrochando para um mundo novo, mas dominado pelo sexo masculino.

Aqui é importante entendermos que, enquanto as atitudes de Willy diante de sua esposa eram inescusáveis, o roteiro faz um grande esforço para demonstrar que existia uma estranha sinergia intelectual entre eles, algo que se impregna Colette e que, quando ela obtém sucesso com os livros protagonizados por sua personagem autobiográfica Claudine, que Willy publica sob seu nome (claro, pois uma mulher escritora seria impensável!), ela compreende e interpreta como seu grito de liberdade. Mesmo considerando os abusos do marido, como o famoso momento em que ele a tranca no escritório só deixando que ela saia de lá depois de escrever um número considerável de páginas, parece ter existido uma relação simbiótica por um bom tempo, a ponto de Colette, mais tarde, ter reconhecido que Claudine não existiria se não fosse Willy. E, de certa forma, a transformação de Colette em um símbolo da independência feminina vem, ironicamente, ainda que em pequenas doses, em razão de Willy e sua abordagem conservadora ma non troppo da vida.

Com isso, o roteiro e a progressão cronológica da obra emprestam desenvolvimento lógico e sólido para Colette, que Knightley tira de letra em, talvez, seu melhor papel até agora. Nunca foi particularmente fã da atriz, mas sou o primeiro a reconhecer o quanto ela dá legitimidade à sua personagem, evoluindo-a franca e organicamente de uma garota ingênua do campo até uma mulher cheia de ideias próprias, inovadoras, liberais e extremamente evoluídas mesmo para parâmetros atuais. O desabrochar da personagem é ritmado com o desabrochar do próprio filme, que ganha mais cores e mais vida na medida em que progride e coloca Colette como parte integral do tecido social parisiense, inclusive com relações com outras mulheres.

Falando em atuações, Dominic West é outro ator com que sempre tive problemas, apesar de eu tê-lo conhecido como protagonista na excepcional série The Wire. Depois do fim da produção da HBO, o ator nunca mais conseguiu mostrar a que veio e sua canastrice passou a constantemente falar mais alto em seus papeis. Em Colette, porém, West dá vida à perfeição ao seu Willy usando justamente seu ar bonachão como grande fonte de inspiração. Apesar de o personagem ser uma constante na fita, ou seja, ele carece de um desenvolvimento maior, até porque, quando o conhecemos, ele já está, digamos, “pronto”, o ator consegue criar uma fusão perfeita entre o repugnante e o irresistível, entre o canalha e o simpático. E, assim, Willy transita, com o roteiro evitando demonizá-lo de maneira exacerbada e transformando-o muito mais em uma amálgama da sociedade machista da época do que um vilão.

A reconstrução de época também vale destaque, com diversas filmagens em locação em Paris, cidade fotogênica por si só e preparada naturalmente para lidar com uma fotografia do comecinho do século XX. Os figurinos de Andrea Flesch evoluem na mesma toada do desenvolvimento de Colette, mantendo a harmonia, mas também quebrando-a quando necessário, como na escolha do vestido para a primeira aparição da protagonista como esposa de Willy. A fotografia de Giles Nuttgens, por seu turno, consegue dar destaque para os elaborados e vividos cenários interiores, sempre que possível utilizando luz natural ou, pelo menos, luz que emule a natural, o que garante uma suavidade que só chama mais atenção para a dupla principal. Se existe um incômodo com o filme, este fica por conta de ele ser falado integralmente em inglês britânico, apesar de se passar completamente na França, algo que fica ainda mais evidente quando a narração em off de Knightley é utilizada por sobre Colette escrevendo em francês (teria sido mais orgânico se ela pelo menos escrevesse em inglês). Mas é um detalhe menor, sem dúvida.

Colette é um filme sobre o papel protagonista da mulher na sociedade que organicamente usa a escritora francesa como veículo de divulgação de sua mensagem. Poder-se-ia facilmente dizer, também, que Colette, a autora, foi, ela mesma, tão integral à emancipação feminina que sua história e a mensagem passada se confundem. E é divulgando essa história que divulgamos a mensagem e, claro, aprendemos a lição.

Colette (Idem, Reino Unido/EUA – 2018)
Direção: Wash Westmoreland
Roteiro: Richard Glatzer, Wash Westmoreland, Rebecca Lenkiewicz
Elenco: Keira Knightley, Dominic West, Eleanor Tomlinson, Aiysha Hart, Fiona Shaw, Denise Gough, Robert Pugh, Rebecca Root, Jake Graf, Julian Wadham, Polina Litvak
Duração: 111 min.

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