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Crítica | Colocando o Coelho na Cartola, de Brian Cox

A honestidade cáustica de Logan Roy.

por Ritter Fan
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Eu amo Minnesota. As pessoas são as mais simpáticas. Elas têm o melhor coração. Quando elas falam naquela voz de Fargo, elas soam como uma rena amigável.
– Cox, Brian.

Jamais imaginaria isso acontecendo comigo, já que sempre fui avesso a biografias e, mais ainda, a autobiografias, mas minha leitura de Tudo Sobre Mim!: Minha Notável Vida no Show Business, por Mel Brooks, abriu meu apetite para o gênero, mas com duas características que, pelo menos nesse meu passeio inicial, precisam estar simultaneamente presentes. A primeira delas é que as autobiografias sejam de celebridades do cinema, televisão e/ou teatro já de idade considerável e que estejam ou tenham estado na ativa há muitas e muitas décadas, de forma a que as histórias sejam potencialmente ricas, relevantes e variadas. A segunda é que haja uma versão da obra na forma de áudio livro narrado pela própria celebridade, de forma que eu possa ler uma vez e escutar em seguida da maneira que melhor me aprouver.

Quando soube que o ator escocês Brian Cox – hoje certamente mais lembrado por seu marcante papel em Succession – lançaria sua autobiografia no começo de 2022, preparei-me para repetir o processo que segui com Mel Brooks. Fiquei especialmente curioso em razão da sólida base de Cox no teatro britânico, com sua consequente, mas lenta mudança para Hollywood, mas sempre para viver papeis que podemos classificar de secundários e, também, pela oportunidade de escutar Logan Roy falando sem parar por algo como quase 12 horas. E, mesmo ainda tendo reticências sobre o gênero literário que resolvi desbravar comedidamente, devo dizer que não me arrependi.

Sem querer comparar, mas já comparando, esperava de Cox um texto de certa forma semelhante ao de Brooks, ou seja, algo mais na linha da chapa branca, sem economia de elogios a todo mundo citado e com os lados negativos de sua vida ou reduzidos ao mínimo ou completamente eliminado. Esperava, mas não queria claro, pois essa é a principal razão de eu sempre ter fugido desse tipo de obra. No entanto, logo notei que a proposta dele foi bem diferente da de Brooks. Enquanto o comediante de certa forma usou seu livro como uma espécie de testamento de pegada cômica sobre seu legado para o mundo, falando do que foi positivo e glosando o negativo, Cox não se fez de rogado e escreveu algo que me pareceu muito mais honesto e verdadeiro, em que ele não só aborda seus próprios defeitos e problemas, como também trata as pessoas por ele citadas com toda a dualidade do ser humano, e isso mesmo quando ele fala de grandes amigos seus, como são os casos do saudoso Nigel Terry (o Rei Arthur, de Excalibur) e de Michael Gambon (o Professor Dumbledore a partir de Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban). Sua pegada é por vezes tão franca e ácida que fico imaginando o trabalho que seu editor e talvez advogado tiveram, toda vez que recebiam um rascunho, para tentar evitar processos no futuro.

Em termos estruturais, Cox segue os eventos de sua vida em ordem cronológica, mas sem aquela rigidez que imaginamos quando alguém se propõe a fazer isso, o que torna a leitura muito agradável, próxima de uma efetiva conversa com o autor. O que ele faz, de verdade, é manter os os eventos macro em uma direção única – infância, adolescência, começo da vida no teatro, amadurecimento como ator, migração para Hollywood -, mas pulando temporalmente sempre que necessário para criar contexto, exemplificar ou mesmo apenas ilustrar determinado ponto e isso sem jamais confundir o leitor. Muito ao contrário, com isso ele consegue quebrar possíveis capítulos monótonos ou repetitivos, com seu enriquecimento, seja com a abordagem de eventos futuros, seja voltando no tempo para pequenas anedotas que ele “pulou”.

Essas anedotas vão desde lembranças sobre seu pai, de quem ele sente grande orgulho, até um dia em que ele, criança ainda, vendo a segunda seção seguida de Assim Caminha a Humanidade no cinema de sua cidadezinha, dormiu e só acordou às quatro da manhã em uma sala vazia, o que o levou a sair correndo em direção a seu lar, sendo parado por uma voz incorpórea vinda da caixa azul de polícia – que ele literalmente chama de TARDIS! – de um policial que pergunta quem ele é e que, depois de uma verificação, descobre que ele já está sendo procurado, mas sem que o dono da voz jamais saia dali de dentro em razão do frio. O próprio prólogo de sua autobiografia é uma anedota, em que ele conta seu contato com Steven Seagal no set de Glimmer Man, em que ele basicamente destrói o “não-ator” não por Seagal não ser ator, mas sim por ele achar-se como tal, andando de um lado para o outro como se fosse a pessoa mais importante do mundo. Esse é, aliás, o gatilho narrativo que ele usa para ilustrar o título, ou seja, que é necessário primeiro colocar o coelho na cartola para depois retirá-lo triunfalmente e não o contrário.

Considerando sua idade – 75 anos quando da publicação da autobiografia – e a quantidade de peças e filmes em que atuou, ele tem muito a contar e sua franqueza no estilo doa a quem doer não é nunca, em momento algum, simplesmente gratuita. Ele apenas fala o que ele acha, por exemplo elogiando efusivamente Daniel Day-Lewis, mas colocando em cheque o “Método” famosamente usado pelo ator (e por muitos outros) em que ele entra no personagem no começo das filmagens e não sai mais até o final. Ele indaga para que isso e traz excelentes argumentos a partir de suas experiências no teatro que indicam, para ele, que o ator não precisa “se transformar” no personagem, mas sim emprestar sua visão ao personagem, de forma que os espectadores tenham como resultado uma fusão de pessoa e personagem e não “apenas” o personagem.

Cox também reclama muito dos atores e atrizes que querem aparecer mais do que seus personagens, fazendo um show para si mesmos e não para a plateia. Um desses exemplos é Ian McKellen, que ele considera quase que um showman que sempre se coloca a frente de quem ele retrata, seja no teatro, seja na televisão ou no cinema (e, se pararmos para pensar e especialmente se compararmos com o citado Daniel Day-Lewis, faz pleno sentido). Novamente cabe a aplicação do título aqui, já que é, obviamente, um tema subjacente por todo o texto de Cox.

Mas Cox não fala apenas dos outros. Muito ao contrário, ele revela completo desprendimento ao lidar com suas próprias questões, especialmente seus casos extramaritais que levaram a divórcios. Mas ele não chora sobre o leite derramado e é honesto com seus sentimentos. Ele lamenta a dor que causou, mas não usa suas memórias para implorar por desculpas ou para pedir simpatia do leitor. Ele apenas relata, de certa forma contrito, o que aconteceu algumas vezes e o que o levou a fazer o que fez sem embelezamentos estilísticos ou palavras de conforto. Igualmente, ele deixa evidente que sua carreira cinematográfica é mesmo composta de “personagens coadjuvantes” e que ele não se importa exatamente com a qualidade geral do roteiro e sim com o de seu personagem. Além disso, ele não tem vergonha alguma – mesmo considerando-se socialista, mesmo deixando bem clara sua posição política de esquerda – em afirmar com todas as letras que o que ele quer é fazer seu trabalho da melhor forma possível para primordialmente ganhar dinheiro. É raro ver um ator falar disso e é mais raro ainda quando isso se torna um tema recorrente ao longo da autobiografia.

Para quem – como eu – não conhece sua vida no teatro britânico, vale dizer que ele dedica grande parte de sua obra a tratar desse lado de sua carreira, sempre deixando claro, porém, que seu sonho era mesmo Hollywood (outra coisa rara de se ver em artistas que começaram sua carreira no teatro). Mas ele o faz de maneira orgânica e muito bem trabalhada, sempre discutindo seus acertos, mas também seus erros, como uma de suas performances na montagem de Rat in the Skull em que o diretor literalmente o levou para uma sala separada para basicamente soltar o verbo sobre sua atuação mais preocupada em si do que no personagem. E ele também não economiza palavras azedas ao Teatro Nacional Britânico, que ele considera uma organização péssima, enquanto ela deveria ser o ponto alto do país em termos dramatúrgicos.

E, da mesma maneira franca que fala de si e de seus pares – seja positiva ou negativamente – ele aborda polêmicas e tabus, como Mel Gibson (“Muito compassivo, muito preocupado. Gentil.”), Woody Allen (“um dos mais eficientes diretores”) e Kevin Spacey (“Um grande talento. Mas, tristemente, um homem estúpido demais.”), três nomes problemáticos que ele não tem vergonha nenhuma de elogiar muito o trabalho profissional, sabendo fazer o que muita gente não sabe, ou seja, separar esse lado do lado pessoal. Aliás, Cox tem algumas boas palavras a serem ditas sobre a tal famigerada Cultura do Cancelamento que muita gente – inclusive muitos de seus colegas – deveria ler.

Finalmente, um pouco sobre a versão em áudio livro: Cox pode não ter o joie de vivre que Mel Brooks demonstra na leitura de sua autobiografia, e faltou um trabalho um pouco melhor na edição, para reduzir algumas hesitações, pigarros e erros do ator, mas é sem dúvida muito interessante ouvir Logan Roy falando sobre Brian Cox e genuinamente se emocionando em algumas passagens, especialmente as que se referem a seus pais e a alguns de seus vários amigos e amigas que faleceram ao longo das décadas.

Colocando o Coelho na Cartola – minha própria tradução para o título original, já que o livro não foi publicado por aqui ainda – é um deleite para se ler e também para se ouvir. Um ator que até bem pouco tempo atrás permanecia em segundo e terceiro planos no selvagem mundo hollywoodiano, mas que tem muito a contar sobre a vida de um ator e todos os problemas e felicidades inerentes a ela. E o melhor: sem medo de ferir suscetibilidades ou de se colocar como potencial alvo daqueles que só conseguem aceitar opiniões referendadas por todos.

Colocando o Coelho na Cartola (Putting the Rabbit in the Hat –  A Memoir, EUA – 2022)
Autor: Brian Cox
Editora original: Grand Central Publishing
Data original de publicação: 18 de janeiro de 2022
Páginas: 384

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