Home Diversos Crítica | Um Crime na Holanda (Comissário Maigret #8), de Georges Simenon

Crítica | Um Crime na Holanda (Comissário Maigret #8), de Georges Simenon

Em nome da ordem.

por Luiz Santiago
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Georges Simenon é muito bom em transformar as cidades onde ele adapta suas histórias em personagens extremamente cativantes. Desde as primeiras páginas de seu primeiro romance policial, Pietr, o Letão, vemos como o autor explora o máximo de detalhes possíveis das ruas por onde os personagens passam, dos restaurantes que visitam, da estação de trens e, principalmente, dos ambientes banhados por água — um verdadeiro ingrediente da obra simenonesca. Um Crime na Holanda se passa na cidade litorânea de Delfzijl, nos Países Baixos. Ao longo de dois dias, no mês de maio, o Comissário Maigret é enviado pela polícia francesa à localidade, para acompanhar a investigação do assassinato de Conrad Popinga, ex-capitão e professor da Escola Naval de Delfzijl. A presença de Maigret se faz necessária porque Jean Duclos, um francês de origem suíça, professor de Criminologia na Universidade de Nancy, foi visto saindo do banheiro da casa dos Popinga com um revólver na mão, mas há indícios de que ele não cometeu o crime. Todavia, precisa ser acompanhado por uma autoridade francesa, e deve permanecer na cidade à disposição da polícia.

Para Maigret, esta é uma situação entediante, e o leitor percebe que o fato de ele não falar uma palavra em holandês torna toda aquela operação um suplício crescente, principalmente durante os momentos mais importantes da investigação. Aqui, Simenon realiza uma exposição social à la O Discreto Charme da Burguesia, mostrando a suposta paz e perfeição de uma cidadezinha, exibindo algumas máscaras e, pouco tempo depois, derrubando cada uma delas. É um livro que nos apresenta um antro de “cidadãos de bem“, a maioria protestantes (até de uma ala moralmente extrema da igreja), com comportamento rígido e austero. São famílias de boa renda, tementes a Deus, e para as quais um comportamento “fora dos padrões de retidão esperados” já era motivo de escândalo. E é justamente nesse meio tão impossivelmente problemático que um assassinato ocorre. Quem, dentre tanta gente perfeitinha, poderia ter cometido um crime?

Os primeiros capítulos nos fazem conhecer os personagens principais e os seus primeiros encontros com Maigret. Como já foi dito, o fato de o Comissário não falar holandês se torna uma dificuldade recorrente, com passagens que nos angustiam, indicando que certas pessoas claramente queriam conversar com o policial, mas não podiam, porque também não falavam francês. Esse impasse de comunicação serve de equilíbrio na organização dos problemas enfrentados pelo policial. Como a maneira de Maigret reunir provas é incomum, o leitor tenta pegar o maior número de indícios possíveis para entender qual é a sua linha de pensamento; mas muita coisa ainda nos escapa. Além disso, Simenon explorou constantemente a atmosfera de tédio, a fim de dar uma aparência diferente à investigação: é muito difícil montar um caso onde não é possível conversar com as pessoas e onde aparentemente “nada acontece.”

Essa lentidão narrativa pode afastar leitores mais impacientes. De minha parte, achei muito boa a maneira como o autor ergueu a problemática a partir de migalhas, aumentando, nos capítulos finais, o número de apostas de Maigret e o número de ganhos que ele consegue como resultado de seus jogos psicológicos. E a personalidade do Comissário recebe, neste livro, uma cor diferenciada. Há uma sequência excelente aqui, que é quando Pijpekamp, Comissário local, dá um fausto almoço para Maigret e reserva para a sobremesa a notícia de que “conseguira resolver o caso“. Simenon faz um jogo excelente nesse momento, deixando Maigret conscientemente desinteressado por tudo o que se passa na mesa. Mas depois do acontecido, já na delegacia, ele tem a humanidade de agradecer amigavelmente pelo “ótimo almoço“. É muito interessante ver como esse homem grande, rude na aparência e nos atos, tem um coração capaz dos mais impressionantes atos de gentileza e sensibilidade.

Quando reúne os personagens em uma sala para reconstruir a noite do crime e depois revelar quem é o assassino (método que nos lembra muito o de Hercule Poirot), Maigret faz surgir outro debate, colocando a moralidade em pauta e confrontando-a com a consciência e o dever do Comissário, seja como cidadão, seja como agente da lei. Pergunta-se se é realmente útil para uma sociedade tão perfeita e bem fundamentada como a de Delfzijl, a denúncia do verdadeiro culpado. Que bem isso traria para todos? Não seria melhor assumir que o problema foi causado por um forasteiro e esquecer o caso? Maigret é censurado e criticado por expor a face do cidadão médio de Delfzijl, mostrando que no meio de tanta paz e tédio; abusos, traições e premeditações criminosas corriam soltas. Os valores rígidos dessa sociedade tornavam a vida da maioria, um verdadeiro inferno interior. Mas todos aceitavam a farsa. E se ressentem imensamente de ter uma parte da sujeira dos bastidores revelada ao mundo. O típico comportamento dos cidadãos de bem, conservadores e religiosos, quando seus podres começam a vir à tona.

Um Crime na Holanda (Un Crime en Hollande) — Bélgica
Série Comissário Maigret: Livro #8
Escrito em:
maio de 1931
Publicado em: 
julho de 1931
Autor:
Georges Simenon
Editora original: A. Fayard
No Brasil: Companhia das Letras (outubro de 2015)
Tradução: André Telles
145 páginas

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