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Crítica | Inferno a Bordo (Comissário Maigret #9), de Georges Simenon

Um ambiente tenso e um capitão à beira da loucura.

por Luiz Santiago
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Neste 9º livro da série Comissário Maigret, o escritor Georges Simenon nos apresenta uma trama que lembra um pouco do ambiente explorado em O Cavalariço da Providence, igualmente lançado no ano de 1931.Em Inferno a Bordo, o autor coloca o Comissário substituindo uma tranquila temporada de férias para embarcar para Fécamp, na região administrativa da Normandia, após ser convocado de maneira extra-oficial para acompanhar a investigação de um assassinato que tem deixado os marinheiros tensos. O jovem responsável pelo telégrafo do barco Océan, Pierre Le Clinche, é acusado e preso, mas como é uma pessoa querida por muitos habitantes da cidade, acaba sendo defendido, e é em favor dele que um antigo colega de escola de Maigret (hoje professor) pede para que o policial vá a Fécamp e desvende o crime.

O autor nos conduz por um labirinto litorâneo de pistas e suspeitos entre os tripulantes do barco, revelando as tensões psicológicas e inúmeras questões ligadas a padrões e comportamentos sociais que permeavam o ambiente de uma cidade praieira dos anos 1930. Atraindo-nos para as consequências do que ocorre nas tensas semanas em que esses homens passaram no mar, explora-se situações que refletem o peso do isolamento e, a partir daí, confronta-se esses indivíduos com os limites da sanidade e da moralidade. Falando do capitão Octave Fallut, que é morto pouco depois da chegada do barco ao porto, Simenon faz emergir questões cruciais sobre as relações humanas e a fragilidade da mente em um ambiente opressivo, tendo no topo de tudo isso a pressão de manter uma posição e máscara social (no livro anterior da série, Um Crime na Holanda, o mesmo princípio de moral de grupo foi explorado, só que num ambiente campesino). 

Simenon, sempre hábil criador de ambientes e atmosferas, mais uma vez constrói de maneira aplaudível o cenário de cidade pequena com um hotel importante, grande atividade pesqueira e um bar repleto de marinheiros (Au rendez-vous des Terre-Neuvas, que aliás, é o título original do livro) bebendo até perderem todo o dinheiro e de cara fechada para a polícia, ressentidos pelo fato de “terem prendido um colega inocente”. A tensão, a melancolia e a solidão das viagens de pesca nos Grandes Bancos da Terra Nova são exploradas de maneira bastante ampla aqui, num exercício mental e analítico de Maigret, o maior que eu o vi fazendo até esse momento da série. Ali pelos últimos três capítulos do volume, o policial transporta o leitor para um mundo onde a quebra de uma antiga regra (não levar mulher para uma viagem em alto mar) traz uma situação opressiva para todos, onde a incerteza e o perigo espreitam a cada onda. 

A figura de Maigret é mais uma vez um farol de perspicácia na investigação, com ele observando tudo o que acontece, irritando-se mais que o normal e tentando entender qual a motivação para o assassinato do capitão – já que não tem intenção alguma de aceitar a justificativa de que “foi suicídio”. A Sra. Maigret também aparece aqui, pois acompanha o marido nesta viagem que deveriam ser as férias do casal. Ela fala e aparece pouco, mas o bastante para confirmarmos o quanto se trata de uma personagem preciosa. O tom de parceria e de amor costura de maneira leve toda a trama, e é nessa linha que o autor se equilibra para trazer o desfecho ao enredo, com um encerramento tão bonito e satisfatório que nos deixa com um largo sorriso no rosto.  

Inferno a Bordo é uma boa história policial, repleta de momentos tensos, bom uso da linha psicológica no desenvolvimento dos personagens e uma boa dose de questões sociais como causas adicionais dos problemas. O miolo do livro se alonga demais em situações superficiais e pouco interessantes para a história como um todo, mas não nos faz perder o interesse pelo que está sendo narrado. A fluidez dramática habilidosa do autor, as pistas espalhadas por todos os lados e a atmosfera hostil são elementos que nos conduzem por uma jornada cheia de inseguranças e explicações reconfortantes sobre quem fez o quê, e por quê. É um livro simples, cuja trama ligada a trabalhadores do mar, desequilíbrios emocionais e relações conflituosas entre pessoas pressionadas ou perturbadas por um gatilho específico ressoa além de sua época, estabelecendo-se como uma leitura que cabe muito bem até os dias de hoje, inclusive nos aspectos machistas dos homens do mar, das superstições, do medo de “decepcionar a sociedade e desonrar um cargo” e das coisas que as pessoas fazem para esconder os seus prazeres proibidos dos outros.

Inferno a Bordo (Au Rendez-Vous des Terre-Neuvas) — Bélgica
Série Comissário Maigret: Livro #9
Escrito em: 
julho de 1931
Publicado em: 
agosto de 1931
Autor: 
Georges Simenon
Editora original: A. Fayard
No Brasil: Companhia das Letras (outubro de 2014)
Tradução: André Telles
137 páginas

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