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Crítica | Como Era Verde o Meu Vale

por Guilherme Almeida
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Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data”. A fala de Riobaldo, personagem de Grande Sertão: Veredas, destaca que, psicologicamente, o afeto interfere na construção da memória. O conteúdo expressado pelo jagunço coincide com aquele transmitido pelo filme de John Ford, Como Era Verde o Meu Vale (1941). Nele, Huw (Roddy McDowall), encontra-se duplicado como o menino que vivera a infância e o narrador já crescido que relembra com deleite do passado.

No princípio da narrativa, a criança vive em comunhão quase utópica com os membros da família e da comunidade de um vale localizado no País de Gales. Vemos os rituais de canto coletivo, o trabalho como concórdia, as alegres refeições à mesa… Tudo embelezado pela admirável fotografia de Arthur Miller e pela trilha marcada por harpas e violinos. Constrói-se a imagem de um paraíso que, no entanto, sofre a ameaça de um espectro que ronda o aspecto do “progresso”, do avanço econômico, simbolizado pelas minas de carvão, a “escória negra” que causará reviravoltas na harmonia estabelecida.

Visualmente, o conflito entre guerra e paz se dá pela presença simultânea, no quadro, da paisagem bucólica e das fábricas que exalam uma escura fumaça que conspurca a pureza natural. Também em termos de pureza e mácula se estrutura a vida de Huw, e nesse sentido o filme funciona como um pequeno Bildungsroman (romance de formação) que acompanha o choque do personagem com o mundo e os aprendizados dele consequentes. Huw passa pela desestruturação da família, pelo bullying na escola, pelo preconceito social e, além de tudo o mais, depara-se com a morte. Todas as tramas secundárias ou subtramas atravessam o filtro do olhar infantil; tudo gira ao redor da criança, centro de gravidade dos pequenos fios de estória que surgem na obra.

Mas é justamente na conformação do enredo que moram os maiores problemas deste filme. O roteiro de Philip Dunne simplesmente não funciona. Como Era Verde o Meu Vale é baseado no romance de Richard Llewellyn e comete o erro de não fazer uma adaptação adequada para a realidade cinematográfica. Não é possível transmitir todas as especificidades presentes no livro original, e a tentativa de fazê-lo resulta em um filme que não se sustenta em pé, pois abrem-se parênteses que não são fechados, vários personagens são mal desenvolvidos e muitos núcleos permanecem não concluídos. É claro que a evolução plena de todos os personagens não é um princípio axiológico da construção histórica, e alguém poderia argumentar que o trajeto dos personagens secundários neste filme de John Ford é irrelevante, sendo realmente significativo o aprendizado do protagonista e sua reação às peripécias alheias. A objeção, no entanto, não convence: está mais do que claro o abismo entre intenção e execução, bem como o retumbante fracasso do roteirista em fazer conviverem com pouco tempo disponível uma profusão de personagens potencialmente interessantes.

Se transitamos da análise do enredo para a da direção, a situação já é outra. John Ford é um dos mestres da Hollywood clássica; rei dos westerns, ele também fez sucesso em outros gêneros, e ganhou cinco vezes o Oscar de melhor diretor. Como Era Verde o Meu Vale voltou para casa com o prêmio de Melhor Filme, batendo o aclamado Cidadão Kane, obra-prima de Orson Welles. Não há dúvidas de que o Kane é muito superior ao filme de Ford, por sua ousadia no manejo da linguagem cinematográfica. Mas à parte a controvérsia a respeito da premiação, resta claro o valor e sensibilidade dessa obra nostálgica e encantadora.

Aliás, é lícito dizer que ela, apesar de não ser das mais características do “selo John Ford”, contém elementos recorrentes ao longo de boa parcela de sua filmografia. O diretor é autoral na medida em que seus filmes transmitem conteúdos intelectualmente coerentes — a câmera expressa uma cosmovisão, uma disposição moral, um feixe de valores consolidados, apesar das diferenças de enredo. No caso de Como Era Verde o Meu Vale, podemos notar o relevo dado aos rituais comunitários e a força da família como porto seguro. A digital impressa desse grande diretor (influência inescapável para a cinematografia americana ulterior) garante ao filme uma qualidade que sobrevive à falência de seu desenvolvimento dramático. Num filme preto e branco, não deixa de ser irônica a valorização da cor verde do vale. Como o menino Huw, colocamos os óculos mágicos da infância e vemos colorido um filme que tinha tudo para ser cinza.

Como Era Verde o Meu Vale (How Green Was My Valley, EUA, 1941)
Direção:
John Ford
Roteiro: Phillip Dunne e Richard Llewellyn
Elenco: Walter Pidgeon, Mareen O’Hara, Anna Lee, Donald Crisp, Roddy McDowall, Sara Allgood, Barry Fitzgerald e Patric Knowles
Duração: 118 minutos

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