Companheiros, Quase Uma História de Amor (1996), filme muito querido de Peter Ho-Sun Chan, é daquelas obras que começam prometendo (ou aludindo a) um romance descomplicado e bonitinho, para, logo em seguida, desembocar num enredo de camadas que falam de amor, sim, mas também de imigração, identidade linguística e cultural, crise financeira, desemprego, subemprego, máfias e uma Hong Kong em processo de transformação capitalista. O texto de Ivy Ho nos faz acompanhar Li Xiaojun (Leon Lai) e Li Qiao (Maggie Cheung), dois imigrantes da China continental que desembarcam na “região das promessas” nos anos 1980, carregando sonhos distintos e um destino que os entrelaça ao longo de uma década turbulenta. Com a devolução do território à China em 1997 pairando no horizonte (já na parte final da obra), o filme costura uma narrativa que é íntima, mas que jamais ignora as convulsões daquela sociedade em transição, mostrando como o particular e o coletivo socio-histórico andam juntos.
O cerne do longa são os encontros, convivência e desencontros entre os protagonistas, uma coreografia lírica de idas e vindas que revela a incerteza em que eles viviam, divididos entre o amor, as obrigações e as dificuldades que se apresentavam no caminho. Xiaojun, com sua alma simples e uma lealdade teimosa à noiva que ficou no continente, tenta aprender cantonês e acompanhar a vida numa cidade com ritmo e ideais que ele tem dificuldade de acompanhar. Li Qiao, por outro lado, chega com uma determinação firme e desafiadora, tentando ganhar muito dinheiro, realizando diferentes tipos de trabalho e tentando não machucar seu coração. Essa diferença entre os dois — ele mais enraizado e comedido, ela mais expansiva e livre — cria a tensão que dá vida ao filme, sem cair no convencional. A narrativa abraça um pouco o silêncio (infelizmente, cortado por uma trilha sonora bela, mas repetitiva) e tenta mostrar muito mais do que apenas a interação entre esses indivíduos, falando da permanência de seus laços, mesmo diante de tantas condições desfavoráveis.
Fotografada por Jingle Ma, a região de Hong Kong é um organismo vivo no filme, com seus neons brilhando em cores saturadas e mercados abarrotados, luzes mais suaves nos interiores e variedade de ângulos e planos para mostrar a chegada, o crescimento e a intensidade do sentimento dos personagens. Quando a câmera se aproxima de Li Qiao, por exemplo, é impossível não sentir o vazio que ela esconde sob a fachada de força — mérito também de Maggie Cheung, numa atuação que mostra vulnerabilidade e enlevo apaixonado. Leon Lai, por sua vez, cria um personagem com bondade quase ingênua, e sua dificuldade de se adaptar é um retrato de quem tenta segurar um mundo que já escapou pelas mãos; suas cartas à noiva são menos sobre amor e mais sobre um apego a uma ideia que não sobrevive à realidade, quase uma farsa emocional e social que ele, por não ter aquilo que realmente queria, leva adiante.
Além do romance, o diretor destaca um diálogo constante com a imigração, que não é só citação, mas um fio importante que costura tudo — Xiaojun e Li Qiao fazem parte de uma leva de chineses que buscaram em Hong Kong uma chance de recomeço, só para esbarrar em diferenças linguísticas e culturais que os isolam e os forçam a condições desumanas. Esta é também a experiência de tantos outros trabalhadores asiáticos nos EUA, como vemos no final do filme (acrescido da violência urbana), praticamente mostrando um afastamento definitivo: tentativa de “curar as feridas do amor” se distanciando o máximo possível. Todavia, como “estava escrito“, há um reencontro inesperado que traz consigo um pouquinho de mistério do destino, certa dose de conveniência e, claro, beleza e paixão. A música de Teresa Teng, amada dos dois lados do estreito de Taiwan, vira um símbolo de conexão em meio a tanto tráfego e tanta busca, enquanto a estrutura cíclica da narrativa, com seus retornos inesperados e, novamente, uma trilha sonora repetitiva que domina cenas editadas em fades lentos e que, em certos blocos, ocupam mais espaço do que deveriam, sugere uma visão elástica do tempo, como se o universo conspirasse para juntar aquilo que a vida separava.
Destacam-se aqui as mudanças da sociedade e das pessoas, aliadas a um drama de amor que discute a essência de cada indivíduo e a força dos sonhos pessoais, aquilo que ainda sobra de alguém, mesmo quando tudo amadureceu e se metamorfoseou em outra coisa. O final progride para algo esperado, amarrando as pontas com um laço que pode deixar reticências em algumas interpretações, mas que, com certeza, indica esperança e interrogações diante do futuro. Peter Ho-Sun Chan pega o que poderia ser só mais um romance cozinhado em fogo lento e transforma num retrato noventista de uma era, de uma cidade, de duas almas perdidas que se encontram e que não sabem como construir uma jornada juntos. É muito sobre superação, insistência, permanência e desejos ao longo da vida. Cheios de cicatrizes, os protagonistas são finalmente unidos, agora numa cidade mais barulhenta e ainda mais movimentada. O ar de esperança pulsa. Mas a relação entre cenário e as personalidades que vimos antes, em Hong Kong, não promete exatamente um “conto de fadas” para o casal, que está unido por um laço inquebrável do destino… mas não necessariamente para serem felizes para sempre.
Companheiros, Quase Uma História de Amor (甜蜜蜜 / Comrades, Almost a Love Story) — Hong Kong, 1996
Direção: Peter Ho-Sun Chan
Roteiro: Ivy Ho
Elenco: Maggie Cheung, Leon Lai, Eric Tsang, Kristy Yeung, Christopher Doyle, Tung Cho ‘Joe’ Cheung, Irene Tsu, Yu Ting, Michelle Gabriel, Bobby Yip, Dora Ng
Duração: 115 min.