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Crítica | Conflito Mortal

por Luiz Santiago
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Entre 1982 e 1987, Wong Kar Wai escreveu treze roteiros para o cinema. Embora não tenha dirigido nenhum deles, apenas feito parte de equipe de segunda unidade, mais um breve momento de atuações e outras funções na produção cinematográfica de Hong Kong, o artista entrou em contato e conquistou a confiança e a amizade de alguns profissionais da área, o que o colocou no páreo de novos talentos da In-Gear Film Production, produtora fundada por Alan Tang em 1987. Um ano depois, chegava aos cinemas Conflito Mortal, primeira direção de Kar Wai e prenúncio de uma filmografia intensa sobre comportamentos humanos em meio a algum tipo de violência… de vários tipos de violência.

O roteiro é do próprio Kar Wai em parceria com Jeffrey Lau, que já haviam trabalhado juntos anteriormente, e dá conta de uma representação fria (na marca majoritária das cores e também no tema) de uma parte da máfia de Hong Kong, onde o “cobrador de dívidas” chamado Wah (Andy Lau) e seu jovem e pouco prestigiado parceiro Fly (Jacky Cheung) parecem viver no limite da morte, enfrentando mafiosos devedores e sempre procurando impressionar o “padrinho” que organiza todas as missões. A ansiedade, o perigo e o isolamento em que vivem esses indivíduos são temas que o roteiro expande a cada novo bloco cênico, avançando a história de uma forma pouco convencional — o tempo da ação tensa puxa um tempo de distensão dos atos que envolvem esses indivíduos, de modo que o enredo caminha como se fosse uma sanfona dramática — e chamando a atenção para um assunto já caro ao diretor e não necessariamente parte cativa dos filmes de máfia e afins: a intimidade e sentimentos dos bandidos que não estão confortáveis em seu atual papel social.

Sim, existem exemplos de noir, polar, de filmes de máfia/gângster ou policiais, em diversas linhas de abordagem (no Oriente e no Ocidente, de Cão Danado e Memórias de um Assassino a Anjos de Cara Suja e O Irlandês) que destacam ou utilizam um certo nível de sentimento e pessoalidade para dar suporte à história. No entanto, em cada um desses exemplos e na maioria de filmes do gênero, o homem da lei ou os bandidos recebem essas luzes interiores como parte secundária da ação principal, das memórias de sua vida, de sua jornada de roubos e assassinatos ou combate a esses e tantos outros crimes. Em Conflito Mortal, porém, o que impera é o senso de isolamento e até depressão dos indivíduos metidos nesse ambiente, encharcados de luz neon e acompanhados por uma trilha sonora que nutre ainda mais esse isolamento, com um único erro sequencial de uso: as repetições de Take My Breath Away, cantada em cantonês e que após a primeira cena em que surge, acaba se tornando incômoda e forçada às voltas com um deslocado senso de melodrama.

É justamente por partir do íntimo, do micro espaço de cada um para a ampla interação social é que as cenas de ação aqui possuem ainda mais força quando acontecem — bem… isso e o fato de serem bastante violentas e filmadas com câmera na mão, delineando a inquietude e rápida percepção desses acontecimentos, ora agilizados, ora desacelerados ou congelados, para mais uma vez levar o espectador a se afastar da ação e atentar para a visão de mundo daqueles em perigo físico ou emocional. O amor, assim, ganha ares trágicos, impedido por uma sina de cara fatalista, como se tudo empurrasse Wah para um isolamento ainda maior, preparando-o para a morte certa. Até o amor fraterno lhe é negado a longo prazo e a relação com o ‘irmão‘ Fly é abalada pelo sonho de grandeza do gângster mais novo, procurando fama entre os pares e sendo desencorajado por Wah, mas sem sucesso.

Conflito Mortal é uma tragédia de cores leitosas e amplamente frias. Até o vermelho é utilizado aqui como um sinal de perigo e ameaça e não como o tipo de uso que normalmente temos para esta cor nas artes em geral. O longa até pode ser “datado” em certos aspectos, como alguns afirmam, mas o que ele aborda, somado à intensidade com que traz esses temas para a tela é algo que perdura. A obra trata da necessidade do homem em encontrar um espaço onde possa pertencer e ser visto. Desta feita, porém, a vida faz questão de negar as duas coisas aos protagonistas, fazendo-os viver um conflito, e depois, tirando-os para sempre de cena.

Conflito Mortal (Wong Gok ka moon) — Hong Kong, 1988
Direção: Wong Kar Wai
Roteiro: Wong Kar Wai, Jeffrey Lau
Elenco: Andy Lau, Maggie Cheung, Jacky Cheung, Alex Man, Ronald Wong, To-Hoi Kong, Ching Wai, Kau Lam, William Chang, Ang Wong, Pa-Ching Huang, Chi Fai Chan, Man-Ho Chan, Tseng Chang, Wing-Cheung Cheung
Duração: 102 min.

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