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Crítica | Conto de Fadas, de Stephen King

História sem fim.

por Ritter Fan
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Stephen King, no alto de seus 75 anos, não só não para de escrever, como continua com imaginação fértil e febril. Apesar de ser obviamente mais conhecido por seus romances e contos de horror, o mestre nunca se esquivou de mergulhar em outros gêneros e Conto de Fadas é sua mais recente incursão na fantasia, mas daquele seu jeito, claro, com pitadas de horror ou, talvez, melhor dizendo, retornando à tradição das fábulas pesadas, violentas e de moral dúbia antes de elas terem sido sanitizadas ao longo dos séculos e, com ainda mais intensidade, no século XX. Mas Conto de Fadas é um livro muito claramente de King por outra menos alvissareira razão, que é sua tendência de se empolgar com suas histórias e não saber mais em que ponto parar.

Todo o conceito do romance – sua premissa mesmo – é ser o que o título diz. Óbvio, não é? Na verdade, não tanto, pois a obra é dividida em dois macro momentos, um que se passa em nosso universo e outro, mais longo, que se passa em um universo de conto de fadas cuja entrada fica no fundo de um poço dentro de uma barracão trancado no jardim da casa de um ermitão idoso que mora sozinho com sua cadela também idosa. Portanto, seria natural concluir que o título se refere a esse segundo momento, mas a grande verdade é que o romance só funciona de verdade se o leitor tiver em mente que Stephen King conta um conto de fadas da primeira até a última página, ainda que essa conclusão não seja exatamente necessária para a apreciação da obra em algum nível.

Narrado em primeira pessoa por Charlie Reade, um adolescente de 17 anos “perfeito demais” (algo que, claro, se encaixa na noção de que tudo é um conto de fadas) que mora em uma cidadezinha fictícia em Illinois (e não no Maine, olhem só!) com seu pai, o romance tem um excelente terço inicial que lida com a vida do rapaz desde o momento em que sua mãe morre em um acidente até o momento em ele que finalmente desce no tal poço. Entre um ponto e outro, aprendemos muito sobre o jovem, seu papel na luta do pai contra o alcoolismo que seguiu a perda da esposa e sua conexão com o ranzinza Howard Bowditch quando ele se acidenta no pórtico de sua velha casa e é salvo por Charlie depois que ele ouve os ganidos da fiel cadela Radar (o nome é em homenagem a um personagem de M.A.S.H.). Obviamente, a riqueza desse início está na relação tripartite entre Charlie, Howard e Radar, com Charlie dedicando-se a ajudar o misterioso senhor a voltar à plena saúde – ou o que é possível em sua idade -, o que significa cuidar da cadela e, aos poucos, descobrir coisas estranhas sobre o morador da casa, o que inclui, por exemplo, um saco de pepitas de ouro guardado em um cofre.

Esse terço inicial tem ótimo ritmo, boa construção de personagens, momentos lindos entre Charlie e o pai, Charlie e Howard e Charlie e Radar e diversas conexões com uma enorme gama de contos de fadas – aqui entendidos da maneira mais ampla possível, o que inclui as próprias obras de King e Lendas Arturianas além das fábulas clássicas – que criam uma história que poderia muito bem ser todo o romance, sendo bem sincero. Mesmo desgostando do estilo de King que não deixa absolutamente nada para a imaginação – o que é uma ironia, se pensarmos bem -, fazendo questão de citar os nomes das lendas e contos que aborda, além de diversos filmes antigos que o jovem conhece por ver muito TCM com o pai, e mesmo considerando que esse começo não traz surpresa alguma, sendo muito mais uma coleção de clichês bem concatenados e escritos (mas lembrem-se: todo o romance é um conto de fadas e contos de fadas têm uma pletora de clichês), é inegável a fluidez da narrativa e a qualidade da escrita de King que torna essas primeiras 200 páginas um deleite difícil de parar de ler.

Mas, talvez em uma versão literária da teoria econômica conhecida como Lei dos Rendimentos Decrescentes, na medida em que a história muda de cenário e avança mais profundamente na fantasia, ela gradativamente perde sua força e seu ritmo. Nas 100 páginas seguintes, que, então, chegam à metade do livro, diversos novos personagens e situações são introduzidos sem que eles, mesmo no agregado, tenham sequer 10% da construção que vimos antes para Charlie, seu pai, Howard e Radar. Não que não seja interessante, pois King cria sua própria versão literalmente distorcida de um mundo fabulesco (que inevitavelmente me lembrou de Fábulas, fantástica HQ de Bill Willingham), mas é que tudo começa a caminhar muito vagarosamente em uma evidente tentativa de construir uma segunda metade da história que vai mais profundamente nesse mundo dentro (ou abaixo ou alguma coisa assim) de nosso mundo. As referências vão sendo intensificadas, assim como o didatismo do autor que se recusa a confiar no leitor para, por exemplo, conectar as janelas verdes da cidade ao longe com O Mágico de Oz e assim por diante.

E, então, quando entramos nessa segunda looooonga metade, a história perde completamente quaisquer resquícios de novidade e a escrita de King parece propositalmente escolher os caminhos mais desnecessariamente tortuosos e complicados para fazer os personagens – ah, esqueci de dizer que há todo um terceiro grupo novo de personagens nessa parte – irem do ponto A ao ponto B, transformando seu conto de fadas em um labirinto narrativo que é ao mesmo tempo cansativo e repetitivo, cheio de explicações, cheio de didatismos, cheio de momentos em tese grandiosos, mas que, curiosamente, ganham abordagem simplista e assim por diante, com cada página sendo menos inspirada que a seguinte. Sei perfeitamente que essa impressão de uma história irrazoavelmente protraída no tempo, quase que como se King ganhasse royalties por peso e não por obra, não é incomum na enorme bibliografia do autor e sei que ele costuma tropeçar no final – cansei de me decepcionar – e isso é, em poucas palavras, o que acontece em Conto de Fadas, infelizmente.

Mesmo assim, reitero que a imaginação de King é um caldeirão fervilhante e é fácil imaginar o prazer que ele tem em colocar no papel um pouco do que ele certamente cria mentalmente todas as horas de seus dias. A maior prova disso é o carinho que ele tem com Charlie e com a cadela Radar e a forma realmente mágica como ele consegue unir os dois. E esse prazer que praticamente está presente em todas as suas obras é desculpa suficiente para aproveitar o divertimento absoluto que é o começo de Conto de Fadas e usá-lo como combustível para seguir em frente, aos trancos e barrancos, pela jornada sem fim que se segue.

Conto de Fadas (Fairy Tale – EUA, 2022)
Autor: Stephen King
Editora original: Scribner
Data original de publicação: 06 de setembro de 2022
Editora no Brasil: Suma (Companhia das Letras)
Data de publicação no Brasil: 22 de setembro de 2022
Tradução: Regiane Winarski
Páginas: 624

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