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Crítica | Contos da Lua Vaga Depois da Chuva

por Guilherme Almeida
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Japão, século XVI. A guerra civil destrói casas e famílias, transforma os homens, cada vez mais brutalizados. Genjuro e Tobei querem o lucro e a glória, o primeiro produzindo cerâmicas, o segundo projetando ser samurai. Enquanto isso, suas mulheres Miyagi e Ohama tentam devolver os homens ao bom senso, ensinando-lhes o valor da estabilidade familiar; nos momentos de revolução social, elas bem sabem, o orgulho sobrepuja o cálculo, a desmedida corrói o caráter. Essa dinâmica de valores, entremeado pelo espectro do combate, é o ponto de partida de Contos da Lua Vaga (1953), do grande mestre Kenji Mizoguchi. Para muitos, trata-se do auge de uma carreira brilhante, recheada ela mesma de clássicos imortais muitas vezes esquecidos pelo Ocidente.

Percorrendo novamente a trilha do Jidaigeki, o drama de época, Mizoguchi trabalha temas históricos sem deixar de acrescentar-lhes uma roupagem atual, incluindo debates próprios à sua filmografia como a situação da mulher na estrutura social do Japão. Há preocupação com certo registro fiel da era feudal, porém o que faz dos Contos uma história tão marcante é a mistura de registros, o casamento muito bem-sucedido entre realismo e fantasmagoria. Conforme veremos, os espíritos surgem aqui como encarnações fugazes, mas momentaneamente indistinguíveis, cujo efeito imediato é o embaralhamento entre sonho e vigília, enganando os personagens e o público.

A história pode ser claramente dividida em dois timbres. Um deles é a crueza da guerra, a fome, o estupro, a ambição, o abandono. Toma, grosso modo, a primeira parte da obra, acompanhando sobretudo os arcos das personagens femininas. Ao inferno contrapõe-se o paraíso vivido por Tobei e principalmente Genjuro, que conseguem por um breve período realizar seus mais profundos desejos. Aquele que sonhava a honra samurai vê-se de súbito, numa viravolta de conto de fadas, um grande guerreiro respeitado por todos. O outro conhece Lady Wakasa, remanescente de um clã arruinado que convida-lhe ao seu suntuoso solar, onde acabam por se unir amorosamente. Mas como nem tudo que reluz é ouro, Genjuro pode esperar a reversão da utopia em tragédia.

As sequências referentes ao interregno amoroso são das melhores coisas já feitas no cinema. Mizoguchi é conhecido por seus planos-sequências longos, em que a câmera move-se sinuosamente, desbravando o espaço e perseguindo os personagens. Aqui, esse efeito adquire uma contração toda especial, digamos fantasmática, que dá ao espectador a impressão de que algo não vai bem apesar da aparência maravilhosa dos eventos; além disso, como se sugerisse uma onipresença espiritual, os travellings alcançam o máximo de ousadia, unindo e transfigurando ambientes. O jogo de luzes abrupto ora clareia o quadro, ora o enegrece, conseguindo ótimos jogos de sombras. Para aumentar o estranhamento, o posicionamento dos atores não segue a norma da continuidade, pois eles podem sumir, reaparecer em outro eixo, ou assustadoramente próximos de Genjuro. Enquanto isso, a profundidade de campo mostra que ao fundo entidades seguem seus movimentos hipnotizados, totalmente absortas em seu trabalho, alienadas dos arredores.

Quando a fantasia cai por terra, Genjuro tem que reatar o princípio da realidade. Ele havia abandonado Miyami e seu filho pequeno, do mesmo modo que Tobei, encantado com as benesses samurais, esquecera-se de Ohama. Nesse meio tempo, as mulheres se arruinaram, vítimas dos males da guerra e da crise econômica, desprovidas do auxílio de seus parceiros. O reencontro dos casais será uma surpresa, quando os homens verão face a face o resultado trágico de seus vícios. Os Contos da Lua Vaga são, portanto, uma história moral, que ensina os perigos do materialismo e da ambição. Baseado na obra literária de Akinari Ueda, o filme tem um tom edificante, ao mesmo tempo cru e otimista, elegendo a espiritualização e a ética budista como formas de sobreviver à tormenta.

Sem revelar o desfecho, cabe antecipar que a morte de uma pessoa do quarteto principal provoca, no que se refere ao enredo, a reeducação moral de outra. Mas não para por aí: a partir desse momento, a própria câmera passa por uma revolução ontológica. Até então, seu movimento persecutório retomava um traço de estilo, configurando-se como o olhar do Artista; mas depois de uma viravolta, confunde-se totalmente com uma subjetiva espiritualizada, virando ela mesma um fantasma a espreitar as famílias. Quando no fim dirige-se em direção ao céu, é a alma que encontra a redenção, a desmaterialização máxima.

Esse clássico de Mizoguchi venceu em 1953 o leão de prata de Veneza. Foi uma obra fundamental para a difusão do cinema japonês no Ocidente e para celebrizar o diretor como um dos mestres do país. Talvez a melhor história de fantasmas já feita, ela é um caso raro de perfeição em todos os níveis, desde a fotografia de Kazuo Miyagawa, que alcança o etéreo, até a trilha de flautas agudas e cantos graves e sincopados. A longa duração dos planos exige muito dos atores, que conseguem carregar todas as exigências dramáticas e que são valorizados por enquadramentos sempre precisos. Como diz Sérgio Alpendre, até a neblina está bem dirigida em Contos da Lua Vaga, ótima porta de entrada para uma das filmografias mais completas e mais injustiçadas de que se tem notícia. E que o espectador não pare na porta, que adentre bem fundo numa trajetória de mais de trinta anos e dezenas de filmes, um verdadeiro suprassumo do cinema.

Contos da Lua Vaga depois da chuva (Ugetsu Monogatari)- Japão, 1953
Direção: Kenji Mizoguchi
Roteiro: Matsutarô Kawaguchi, Hisakazu Tsuji, Yoshikata Yoda, Akinari Ueda (obra literária)
Elenco: Machiko Kyô, Mitsuko Mito, Kinuyo Tanaka, Masayuki Mori, Eitarô Ozawa, Sugisaku Aoyama, Mitsusaburô Ramon, Ryôsuke Kagawa
Duração: 96 min.

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