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Crítica | Contos de Terramar

por Luiz Santiago
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Dentre as muitas coisas das quais Contos de Terramar sofre, eu poderia dizer que a primeira delas tem a ver com a sua casa artística, o Estúdio Ghibli, e o sofrimento, claro, é o peso da absurda excelência deles. Deixemos de lado os medalhões eternos e brilhantes do estúdio. Mesmo se a gente olhar para obras pouco conhecidas do grande público lançadas até aquele momento, como Memórias de Ontem (1991), Eu Posso Ouvir o Oceano (1993), Sussurros do Coração (1995) e O Reino dos Gatos (2002), não temos um único filme da casa que seja menos que ótimo. Na verdade, se a gente analisar a história de produção do Estúdio desde a sua origem, chegaremos à conclusão de que Terramar é a verdadeira grande decepção casa até o momento em que escrevo essa crítica (2021), já que o filme menos notável de toda linha do tempo deles foi PomPoko: A Grande Batalha dos Guaxinins (1994) e, ainda assim, trata-se de um filme genuinamente bom! E é aí que chegamos ao nível de decepção — e de outros problemas — dos quais sofre essa estreia de Gorô Miyazaki  na direção.

Esta animação é uma adaptação do icônico Ciclo de Terramar (The Earthsea Cycle, 1968 – 2001), série literária da grande Ursula K. Le Guin, que depois de muitos anos negando os direitos autorais para qualquer adaptação da saga, acabou cedendo-os para que o mestre Hayao Miyazaki (repito: Hayao Miyazaki!) fizesse mais um de seus milagres. O que veio a seguir foi uma mistura de péssimo timing com pitadas de traição do Ghibli a Le Guin.

Quando as negociações para os direitos da série enfim se concluíram, Hayao Miyazaki estava sobrecarregado com a produção de O Castelo Animado (2004), o que o impedia de se envolver com essa fantasia clássica. E mesmo contra a vontade do diretor, o produtor Toshio Suzuki insistiu na ideia de entregar a direção a Gorô Miyazaki, filho do mestre da casa; e basicamente porque Gôro era um grande fã do original. A escolha, todavia, não poderia ser pior. Este não só era o primeiro longa metragem do Miyazakizinho, mas também um drama de grande peso na literatura de gênero, o que exigia um cineasta experimente no comando… isso sem contar a traição imediata feita à autora, que confiou a obra a Hayao. No máximo, o que poderiam fazer aqui era escalar Isao Takahata para guiar a fita. Mas não foi o que fizeram.

Como resultado, o que temos em Terramar é o primeiro e único longa medíocre do Estúdio Ghibli, e essa visão se dá primeiro no âmbito de contexto e conceito de produção, afinal, é o filme de um “Estúdio-Marca”, um local de altíssima qualidade do qual se espera nada menos que grandes obras. E segundo, no âmbito da diferença entre a parte visual e a trilha sonora da película (absolutamente fascinantes) e o seu confuso, fraco, insosso e chateante roteiro, escrito por Gôro em parceria com Keiko Niwa. Na trama, entendemos desde muito cedo que algo de errado está se passando nos recônditos do Reino de Terramar. O primeiro indício disso é o comportamento totalmente fora da curva dos dragões, o que acaba mobilizando um dos arquimagos mais poderosos do mundo a uma jornada de investigação.

O princípio da narrativa tem as doses básicas e engajantes da fantasia, uma sensação que cresce em algumas cenas mais à frente, quando a primeira grande cidade aparece e temos um gostinho daquilo que sabemos ser a essência do Ghibli. O desenho de produção aqui mistura alguns elementos arquitetônicos e de navegação da Antiguidade Tardia, mas a cara da obra é verdadeiramente Medieval. Muitas cores saturadas, detalhes milimétricos nos desenhos da grande cidade, das ruínas, dos barcos e das vestimentas, especialmente no ato inicial, tornam o filme visualmente incrível e faz jus ao Universo que adapta para as telas. Quando o arquimago se encontra com Arren, o filme reforça o tom de mistério que ficou desde as reticentes cenas iniciais e, desse momento em diante, o máximo que conseguiremos é aproveitar parcialmente as linhas narrativas da fita. Isso porque nenhuma delas consegue um desenvolvimento pleno a partir de seus personagens (todos com diálogos mal escritos) e os mistérios em torno da “escuridão interior” de um jovem personagem, o mistério na pessoa de um outro personagem importante, o mal desenvolvimento do vilão e o Deus Ex Machina que assoma ao final do filme.

Musical e visualmente, Contos de Terramar tem todo o charme que um filme desse porte poderia ter. Mas quando passamos para a história que deveria preencher esse esqueleto formal, não conseguimos nada a mais do que as falhas de um marinheiro de primeira viagem na direção, tendo nas mãos um roteiro ambicioso na criação de mundo, mas fraco no que diz respeito aos indivíduos que deveriam dar sentido a esse espaço. Aquele tipo de obra onde a sequência de decepções parece inacreditável. E fica ainda pior quando paramos para imaginar de onde vem esse caminhão de decepções.

Contos de Terramar (Gedo senki) — Japão, EUA, 2006
Direção: Gorô Miyazaki
Roteiro: Gorô Miyazaki, Keiko Niwa (baseado em um conceito de Hayao Miyazaki e no romance de Ursula K. Le Guin)
Elenco: Jun’ichi Okada, Aoi Teshima, Bunta Sugawara, Yûko Tanaka, Teruyuki Kagawa, Jun Fubuki, Takashi Naitô, Mitsuko Baishô, Yui Natsukawa, Kaoru Kobayashi
Duração: 115 min.

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