Baseado no documentário The Smashing Machine, o longa-metragem de mesmo nome, chamado genericamente no Brasil de Coração de Lutador, tem a ambição de ser mais do que uma biografia convencional e também mais do que um filme de esporte comum. Sob direção, roteiro e edição de Benny Safdie, o filme recorta um trecho da vida de Mark Kerr, ícone do MMA nas décadas de 90 e início dos anos 2000, para iluminar não apenas os confrontos no octógono, mas principalmente os conflitos internos, as feridas químicas e as dívidas emocionais de quem busca ultrapassar seus limites. O esforço de Dwayne Johnson para desaparecer por trás da persona muscular de Kerr, com um trabalho de maquiagem excelente, e sua aposta num papel longe do que normalmente vemos a estrela de ação, é talvez o sinal mais óbvio de que a produção quer ser avaliada não só como espetáculo, e, felizmente, há brilho nisso.
Desde o início, Safdie opta por um caminho de fricção, resistindo à sedução da grandiosidade esportiva e da vitória triunfal. O que temos em essência é um drama doméstico, com uma história paciente e íntima que puxa mais a abordagem do cinema independente do que das grandes biografias que têm tomado conta das telonas, passeando superficialmente pelas vidas dos biografados. Essa ideia é facilmente vista na maneira como o cineasta filma as lutas, com a câmera permanecendo fora do ringue, sem tanta coreografia, com cortes bruscos e golpes secos, tudo acompanhado de uma ansiosa trilha sonora jazzística, como se esses momentos fossem mesmo dramáticos e não puro entretenimento.
A direção de fotografia confirma a aposta de Safdie, com uso de película 16 mm, sombras, granulação e enquadramentos oblíquos que criam uma textura crua que se aproxima de algo quase documental. Até a decupagem emula isso com uma construção de “bastidores”, onde vemos diversos blocos nos vestiários ou então na casa de Kerr, como se estivéssemos desconfortavelmente invadindo momentos de privacidade. Essa falta de glamourização é o que, na minha visão, dá o sabor diferencial da biografia, que aposta num drama denso, discreto e atmosférico de situações específicas, longe da péssima abordagem de “compilado de hits” que vemos no gênero ou então da necessidade de se exaltar os protagonistas.
Nesse sentido, Dwayne Johnson entrega a performance mais contida e plausível de sua carreira. As próteses ajudam a dar magnitude para sua atuação, mas Johnson se esforça ao afastar-se do seu carisma habitual ou até de algum tipo de histrionismo para “se mostrar”, ao encarnar Kerr com uma quietude melancólica, uma vulnerabilidade perceptível em olhares cansados e gestos contidos, além de uma tensão acumulada. Acredito que pouquíssimas produções poderiam dá-lo a oportunidade de exibir sua fisicalidade e emoção, então fico feliz de vê-lo em algo desse calibre. De longe, o melhor trabalho do produtor-estrela nas telonas.
Ademais, gosto de como a narrativa se concentra em um recorte temporal curto, entre 1997 e 2000, atravessando o auge das lutas de Kerr no UFC e no Pride, e mergulhando na sua dependência de opióides e problemas matrimoniais. Safdie introduz com delicadeza o colapso doméstico, como algo que gradualmente vai crescendo em momentos banais (a cena do parque é incrivelmente inteligente nesse sentido), revelando um relacionamento tóxico entre Kerr e Dawn Staples (Emily Blunt, também excelente no papel). Por vezes, sinto que o roteiro pinta Staples demais como vilã, o que não me agrada em certos trechos da trama, mas de maneira geral a ambiguidade se mantém e é o tecido com tensão crescente que dá o coração dramático da obra. O filme é mais eficaz justamente quando observa os silêncios do casal, os desencontros e os lapsos não ditos, do que até nas lutas em si (nesse sentido, até gostaria de ter visto mais da Staples, que inevitavelmente fica subjugada na narrativa).
Chega a ser interessante como Safdie se recusa a dar uma ruptura definitiva para o protagonista, com transições suaves mesmo em situações graves (notem, por exemplo, como a narrativa lida rapidamente com a recuperação de Kerr na clínica de reabilitação), dilemas morais subentendidos e sem nada mastigado para a audiência, mesmo nas brigas maiores entre Kerr e Staples. Dá para se argumentar que esse estilo traz poucas cenas que ganham densidade além da superfície, mas é aí que vejo a sutileza como qualidade, não como deficiência.
Apesar de tudo isso, a obra não escapa totalmente das convenções de biografias de atletas, com sua estrutura dramática seguindo a curva de ascensão, queda e redenção ambígua, mas a trajetória dentro desse tipo de dinâmica foge muito do padrão e aprecio como Safdie não deixa seu longa escorrer para o melodrama. A reta final se aproxima um pouco mais do que é “esperado” de filmes de esporte, com o Grand Prix de 2000 no Pride, mas até aí Safdie tem uma sacada subversiva, com Mark Coleman (Ryan Bader, super carismático) recebendo o arco de superação, enquanto Kerr acaba se mergulhando nos seus próprios problemas (aquela montagem dos dois é simples, porém muito eficiente para passar essa mensagem).
No balanço final, Coração de Lutador: The Smashing Machine é uma obra de ambição consciente e uma tentativa de elevar a biografia de esportes para um terreno mais introspectivo e sensível. Funciona bem justamente porque Safdie recua do espetáculo e nos deixa absorver o vazio, a angústia e a ruptura doméstica de um casal em chamas. Talvez não seja a obra definitiva sobre Kerr que muitos esperavam, contando toda a história do atleta e retratando suas lutas no UFC e no Pride, mas isso é um passo marcante para tramas dessa ordem, que funcionam melhor quando focam em períodos ou situações específicas, algo que ganha dimensão maior aqui quando pensamos na carreira de um ator que ousou despir-se do mito para encarar a ferida de uma figura trágica e empática.
Coração de Lutador: The Smashing Machine (The Smashing Machine) – EUA, 2025
Direção: Benny Safdie
Roteiro: Benny Safdie (baseado no documentário The Smashing Machine: The Life and Times of Extreme Fighter Mark Kerr)
Elenco: Dwayne Johnson, Emily Blunt, Ryan Bader, Bas Rutten, Oleksandr Usyk, Satoshi Ishii, Cyborg Abreu, Marcus Aurélio, Andre Tricoteux, Stephen Quadros, Lyndsey Gavin, James Moontasri
Duração: 123 min.