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Crítica | Coração Valente

por Ritter Fan
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Todo homem morre, mas nem todo homem vive de verdade.
– Wallace, William

Dois anos depois de estrear na carreira de diretor de longas ficcionais com O Homem sem Face, Mel Gibson encarou o desafio de colocar nas telonas um épico que conta a história de William Wallace, nobre escocês que foi um dos líderes do que hoje convencionou-se batizar de 1ª Guerra da Independência Escocesa, iniciada no século XIII. Com Gibson também como protagonista, o roteiro de Randall Wallace, que, antes, só havia assinado textos televisivos, usou como principal fonte de inspiração um poema do século XV que, já àquela época, ficcionalizara a vida do personagem real, pelo que a versão do herói que vemos é muito mais romântica do que fiel.

E essa abordagem é acertada na medida em que o próprio Mel Gibson, que relutou em aceitar o papel e inicialmente queria Brad Pitt como Wallace, estranhamente recusou-se a “parecer escocês” para viver seu personagem, o que significaria deixar a barba crescer, retirando-lhe, potencialmente, muito do seu status de estrela que ainda tinha à época. Digo estranhamente, pois justamente seu papel de dois anos antes, no já citado O Homem sem Face, Gibson viveu um ex-professor com rosto desfigurado. Seja como for, a face limpa de Gibson, aqui, destoa e contrasta muito fortemente com o restante do elenco, o que empresta ao personagem William Wallace uma espécie de verniz mítico, quase messiânico que combina bem com a pegada romântica do poema original que sangrou para o roteiro.

Falando em sangrar, o que não falta é violência explícita em Coração Valente, com Gibson tendo tido até que suavizar diversas sequências para evitar que o filme levasse a temida censura máxima da MPAA, reduzindo potencial retorno de bilheteria. Mesmo assim, muitos desmembramentos, degolamentos e a presença constante e geral de mortes e sangue jorrando estabelecem o tom da obra a partir do momento em que o cineasta termina de apresentar longamente seu personagem com toda a demasiadamente lenta construção que o leva a liderar uma turba ruidosa que causa todo o tipo de problema para o violento e traiçoeiro rei Eduardo I da Inglaterra, conhecido como Longshanks (Patrick McGoohan).

Curiosamente, Gibson mostra-se mais afiado justamente quando solta as amarras que prendem seu personagem a dois romances ao longo da projeção que por diversas vezes caminham perigosamente para tornar o filme um romance de guerra mais do que um filme de guerra com romance. É, portanto, justamente nos combates que o cineasta mostra absoluto esmero e controle de câmera, com tomadas repletas de extras (no caso, reservistas do exército irlandês) que ganham coreografia muito realista, efetivamente colocando o espectador em meio à sanguinolência e à claustrofobia da guerra campal.

A fotografia de John Toll (que faria Além da Linha Vermelha, Vanilla Sky e O Último Samurai, dentre outros) contribui para o realismo das batalhas ao manter a atmosfera pesada, lúgubre, com tons marcadamente mais escuros, mas sem serem sombrios, de certa forma já estabelecendo, mesmo na vitória, uma mensagem subliminar de desesperança. A paleta de cores emudecida, por seu turno, ganha filtros “líricos” nas sequências de romance de Wallace com seu amor de infância Murron MacClannough (Catherine McCormack) e, depois, com a princesa Isabel da França (Sophie Marceau), neste segundo com as cores contribuindo muito para diferenciar a ambientação. O mesmo vale para a trilha sonora do saudoso James Horner (Aliens, o Resgate, Campo dos Sonhos, Titanic) que emprega com vigor notas de uma de suas assinaturas musicais, qual seja, a inclusão de música inspirada em composições celtas, emprestando um ar ao mesmo tempo mítico, lendário, e, quando necessário, heroico e ritmado para as batalhas.

Nas atuações, Gibson convence pelo seu carisma, mas somente quando seu William Wallace deixa de ser o homem apaixonado e transforma-se em guerreiro e líder brutal, mas sempre refinado, capaz de conversar em latim e em francês sempre que necessário. Marceau sem dúvida é o destaque no lado feminino, com McGoohan refestelando-se na vilania, assim como Peter Hanly como o afetado príncipe Eduardo, filho do rei. Dentre os rebeldes, impossível não se conectar com a dupla de filho e pai formada por Brendan Gleeson como Hamish, melhor amigo de Wallace, e James Cosmo como o quase imortal Campbell. Além disso, há que se destacar o trabalho extremamente convincente de Angus Macfadyen como o indeciso e torturado Roberto de Bruce, personagem que extrai do espectador sentimentos conflitantes e antitéticos praticamente o tempo todo, mas sem nunca perder seu tom nobiliárquico e fleumático que mantém mesmo na bela sequência final em que ele finalmente toma uma posição definitiva.

O vai-e-vem tonal entre os destaques românticos e as lutas e batalhas, assim como as diversas vezes em que o ponto-de-vista narrativo é alterado para o lado britânico, criam momentos de calmaria narrativa que esticam a projeção por mais tempo do que o estritamente necessário para que a história fosse contada. Isso é agravado pelo já mencionado começo lento demais que trabalha elipses para contar a “origem” de Wallace desde tenra idade até o estopim de sua revolta, com apenas as brevíssimas sequências com Brian Cox como Argyle Wallace realmente fazendo a diferença.

Mesmo assim, Coração Valente é um belíssimo e raro representante de épicos modernos de guerras antigas, algo muito mais presente na Hollywood clássica e que foi deixado de lado já há muitas décadas. Mel Gibson mostra de vez que sabe manejar a câmera para extrair fortes emoções, sem se acanhar com a violência explícita nas telonas, algo que repetiria mais algumas vezes em sua carreira nessa cadeira.

Coração Valente (Braveheart, EUA – 1995)
Direção: Mel Gibson
Roteiro: Randall Wallace
Elenco: Mel Gibson, Jamie Robinson, Sophie Marceau, Angus Macfadyen, Patrick McGoohan, Catherine McCormack, Mhairi Calvey, Brendan Gleeson, Andrew Weir, Peter Hanly, James Cosmo, David O’Hara, Ian Bannen, Seán McGinley, Brian Cox, Sean Lawlor, Sandy Nelson, Stephen Billington, John Kavanagh, Alun Armstrong, John Murtagh, Tommy Flanagan, Donal Gibson
Duração: 178 min.

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