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Crítica | Coringa (Sem Spoilers)

por Gabriel Carvalho
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Minha mãe sempre me disse para sorrir e colocar um rosto feliz. Ela me disse que eu tinha um propósito de trazer risadas e alegria ao mundo.

Parece que o longa-metragem solo do personagem Coringa, clássico antagonista dos super-heróis dos quadrinhos, já previa as polêmicas que nasceriam ao seu redor. Todd Phillips, enquanto criador de uma nova origem ao arqui-inimigo do Batman, contudo, almeja justamente coisas contrastantes ao que vem sendo colocado acerca do seu projeto. As acusações de irresponsabilidade, mediante uma suposta representação problemática da violência, como se a sua obra estivesse justificando as cruéis ações de seu personagem principal, não avançam em termos de fundamentos, em vista das reais proposições dela serem outras. Esse tratamento a um antagonista já tão visto e revisto pela cultura popular, portanto, rejeita procurar respostas para o drama da sociedade corrompida. Pelo contrário, Phillips concilia um estudo de protagonista bem mais particular que a construção de um arquétipo – a personificação do homem rejeitado pelo mundo – em si proveria. Engana-se tanto quem enxerga no Coringa (Joaquin Phoenix) alguém pensado para os incels – termo popularizado recentemente referente aos celibatários involuntários – quanto para o combate de classes, entre os pobres e os ricos – conceito, por sua vez, presente no longa, mas como oposição. Do drama mais intimista que abrange um ser extremamente adoecido, a sua ressignificação enquanto ícone é vista como uma piada pelo cineasta: o auge de uma comunidade insana que não entendeu a punch line.

Mesmo externo ao eixo da produção contemporânea desse “gênero” de super-herói, Todd Phillips encapsula um pensamento acerca do que é ser herói para uma sociedade que se move em meio as suas ruínas. Ao passo que a origem do Coringa é contada passo-a-passo, desde o personagem cuidando de sua mãe enferma às reviravoltas chocantes que envolvem o seu passado, o caos se instaura em Gotham City. Para outras pessoas, esse maquiado Arthur Fleck – o nome verdadeiro do palhaço – transforma-se em revolucionário. Mas, para o próprio, a oportunidade é apenas de ter uma plateia para aplaudir e prestigiar o seu espetáculo, mesmo sem graça alguma. Como uma das cenas mais importantes do longa-metragem exemplifica, que acontece em um metrô tomado por pessoas mascaradas, a população que assume a presença do Coringa como vanguarda de um movimento social é usada por ele como camuflagem. Noutro momento, a raiva popular contra o rico Thomas Wayne (Brett Cullen) é mudada na visão de Fleck, que se interessa no homem por outros motivos, mais pessoais. Mais insano que o personagem em si, por isso, são aqueles que se apropriam dos seus atos para buscar uma resposta às injustiças sociais. Esse ponto, porém, Todd Phillips esclarece em meio a uma das anotações de Arthur, essencial ao argumento: a pior parte de possuir uma doença mental é as pessoas quererem que você se comporte como se não possuísse.

E o personagem interpretado por Joaquin Phoenix, nesse longa, é certamente um alguém imerso em problemas, não meramente econômicos, logo sociais, entretanto, também mentais. Desde o emagrecimento anormal a que se submeteu o intérprete do protagonista, passando pela depressão notória já em sua primeira aparição, buscando emular alegria do seu rosto choroso, as fragilidades que compõem o Coringa são múltiplas. Nem a sua risada é espontânea ou orgânica, no entanto, diagnosticada como uma patologia, que pode ser realçada em qualquer situação, independente do sentimento. Todd Phillips é certeiro nos elementos de contextualização que insere na sua obra. E existe precisão igualmente por parte do que ele reinventa no decorrer da projeção, impulsionando uma jornada ambígua, de uma pessoa que usa de um contexto propício ao caos generalizado para se auto-promover, mas que nasceu justo deste caos. Em um dos muitos pontapés nesse sentido, os remédios de Arthur que tangem os seus problemas psicológicos terminam sendo cortados da verba governamental. Todd Phillips, apesar de não ser ainda um cineasta maduro o suficiente para promover nuances construídas de maneira mais natural, maneja uma orquestra entre a doença do seu personagem e o descuido que o mundo possuiu com ele – um descuido que parte de causas muito antecessoras a sua carreira de stand-up fracassada ou ao relacionamento amoroso que vive.

Logo, para alguém que enxerga sua vida como uma comédia – uma dentre tantas sentenças mais cafonas que Phillips incorpora ao seu roteiro, juntamente a Scott Silver -, as piadas em si são as mais erráticas possíveis, vis, perturbadas e gratuitas. De uma certa maneira, o protagonista não se emancipa tanto da encarnação de Heath Leadger, a mais celebrada dentre as de tantos atores que assumiram a maquiagem desse palhaço. Os dois papéis se movimentam pelo mesmo princípio caótico, mas, em contrapartida a uma igualdade de comportamentos, a versão de Joaquin Phoenix é menos contraditória em alguns aspectos, por não propor por meio de monólogos um certo ponto, mas apenas esperar ansiosamente a sua chegada. O outro Coringa, por sua vez, planejava o caos, enquanto esse é absorvido por ele e, ao mesmo tempo, também o absorve. Enquanto, no mais, a maquiagem de palhaço usada por Leadger era um deboche, a que Joaquin coloca em seu rosto é acompanhada por uma performance de fato narcísica. Em muitas cenas, Phoenix encena consigo mesmo a sua apresentação, o seu balé, como se fosse parte de uma peça de teatro, e cada um dos eventos-chave que o rodeia encerrasse um ato. Há, por isso, um anseio pelo ar de espetáculo – a exemplo, após o primeiro crime que comete, Arthur corre pela cidade em pânico, e a imagem captura o momento de um modo épico, com a música eloquente complementando este sentimento.

O Coringa permanece sendo, nessa revisão do personagem icônico, uma consequência inerente do sucateamento dos mais pobres em prol da expansão da riqueza dos mais ricos. Mesmo assim, o ponto que Todd Phillips impõe ao personagem em questão é mais complexo do que um possível respaldo de seus atos macabros. Confirma-se um enlouquecimento coletivo, no entanto, não uma revolução propriamente dita. Há um endeusamento em cena dele, pelos grupos reprimidos que se percebem na máscara do palhaço, contudo, não um endeusamento de cena, em vista da ironia que o longa-metragem promove ao seu protagonista, essencialmente performático. Ora, este visual de Joaquin é coloridíssimo, porém, não por causa de qualquer intenção subjacente, e sim visando o propósito chamativo a que um palhaço se traja como um: ser justo o centro das atenções de um espetáculo circense. Na cinematografia do longa, portanto, o seu corpo é as cores ausentes na sujeira do restante do visual. Em meio ao caos de uma cidade imunda, Fleck encontra um público que pode o ver e o aplaudir, tão perturbado quanto ele. Mas enquanto as manadas de pessoas que o adoram enxergam virtudes, revoluções e razões em suas ações, o único que consegue visualizar a piada mortal, presente no terceiro ato dessa sua apresentação, é o próprio. Ninguém percebe a graça, pois não há reais porquês para risadas – mas ele ri, todos aplaudem, e as cortinas descem.

Coringa (Joker) – EUA, 2019
Direção: Todd Phillips
Roteiro: Todd Phillips, Scott Silver
Elenco: Joaquin Phoenix, Zazie Beetz Robert De Niro, Brett Cullen, Frances Conroy, Douglas Hodge, Shea Whigham, Marc Maron, Bryan Callen, Bill Camp, Josh Pais
Duração: 118 min.

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