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Crítica | Couro de Gato

Estética da fome e o retrato do Brasil.

por Fernando JG
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É curioso perceber que esse curta de Joaquim Pedro de Andrade, incluído a posteriori no “problemático” Cinco Vezes Favela (1962), figura como um protótipo para os novos rumos que o Cinema Brasileiro tomaria em seguida. Sabe-se que ainda uma década anterior ao lançamento do curta-metragem havia já uma tentativa vigorosa de ruptura com o modelo clássico de cinematografia, como observamos em Rio, 40 Graus e em alguns curtas experimentais que saiam naquele final de década de 50. Mas aqui, em Couro de Gato, encontramos a gênese do engajamento que seria a marca do primeiro Cinema Novo

No Rio de Janeiro, meninos descem do morro para o asfalto numa caçada desenfreada em busca de gatos, animais que serão vendidos para fabricantes de tamborins. É com o couro dos gatos que se reveste o instrumento. Um dos garotos, então, furta o animal de uma senhora da classe média carioca, mas acaba apaixonando-se por ele e agora precisa decidir, na situação de pobreza extrema, se vende o felino ou se fica com o bicho.

Sem compromisso algum com qualquer enredo romanceado que daria origem a um curta-metragem ingênuo e sentimental – e portanto distanciado da realidade na qual se inspira -, o cineasta, flertando com o núcleo de base do neorrealismo italiano (lembrem-se da dureza que é aquela cena final do indispensável Alemanha, Ano Zero, de Roberto Rossellini), não permite que seu personagem fique com o gato. Entre a fome e o afeto, ganha o estômago e esse não é um ponto de divergência. Faminto de verdade, sem alegoria alguma por trás desta fome, o garoto, com lágrimas nos olhos, vende o seu gato numa cena que escancara a trajetória do desamparo no subdesenvolvimento. 

A todo o tempo, desde o início, vemos uma montagem que busca contrastar o morro com o asfalto, expondo o signo da desigualdade que reina no país, trazendo efeitos de melancolia e de realidade. Em plena festividade de carnaval, algo anunciado também pelo tom festivo da canção que toca ao fundo, a realidade dá a ver o descompasso entre as classes e converte o aqui e agora em melancolia. Não há o que discutir e nem forjar uma discussão moralizante ao redor deste ato: no enredo, o que importa é a fome e ela precisa ser sanada. Por isso que em 1965, quando publica Uma Estética da Fome, Glauber Rocha diz que o cinema brasileiro é o cinema da fome. Assim, portanto, a estética do realismo, que mostra-se afinada com a verdade social, toca em uma das maiores feridas do Brasil Moderno. 

Vemos que o nosso realismo tem uma marca própria, que é a vergonha de carregarmos o status inalterável de uma fome crônica. Cronicamente famintos, arrasados pela condição de subdesenvolvimento. Então, prontamente observamos que o Cinema Novo coloca-se como uma extensão legítima e natural do Romance de 30 e de suas propostas. Deste modo, observamos no curta de Joaquim Pedro de Andrade uma antecipação brilhante dos traços temático-estilísticos que compõe a grande maioria da primeira fase do cinema moderno brasileiro, como nota-se em Vidas Secas, de Nelson Pereira, Deus e o Diabo na Terra do Sol, e ainda em Os Fuzis, de Ruy Guerra. 

Explorando o lirismo através da inocência de uma primeira infância, que tem na imagem da criança a sua maior expressão, Couro de Gato é um exemplo único de recepção da estética realista no Brasil e um dos precursores de tudo aquilo que viria mais adiante enquanto forma e temas devidamente nacionais. Agora, diferente do entusiasmo de 1922, os assuntos brasileiros não são mais festivos e utópicos, mas reais e igualmente incômodos. O Cinema Novo traz à luz, então, num embate destruidor a contrapelo de temas burgueses, os problemas crônicos que fazem da nação um poço de contradições. 

Couro de Gato (Brasil, 1960)
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
Roteiro: Joaquim Pedro de Andrade
Elenco: Cláudio Corrêa e Castro, Milton Gonçalves, Riva Nimitz, Paulinho, Henrique César, Napoleão Muniz Freire, Francisco de Assis
Duração: 15 min. 

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