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Crítica | Cozinhar F*der Matar

por Iann Jeliel
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Filmes como Cozinhar F*der Matar precisam escolher certos caminhos quando optam por ser tão enigmáticos. Dá para centralizar esses caminhos em duas grandes opções: ou a confusão se torna proposital para apresentar sentidos alegóricos, metafóricos, críticos… Ou ela está ali como potencializadora da imersão de uma experiência de gênero, que eventualmente trará seus reflexos críticos também. Acontece que a cineasta eslovaca Mira Fornay não adquire nenhum desses lados, flertando uma vez ou outra com algum deles, o que só deixa a experiência proposta mais frustrante e cansativa de se acompanhar. Especialmente quando se conduz através de um cinismo que remete à escola de Yorgos Lanthimos, frio, distante, só que sem as precisas cutucadas temáticas. Claro, é possível em alguns momentos, absorver um ou outro comentário, mas eles nunca parecem se juntar em uma ideia coesa sobre algo específico.

A mise en scene não possui uma identidade característica, enquanto ela insinua um realismo básico de paralelismo no primeiro ato (bem convidativo), os subsequentes sem critério instauram surrealismo que simplesmente não combinam com a abordagem inicial de filmagem. Em suma, a narrativa consiste em ciclos de diferentes realidades sobre uma mesma situação. O protagonista Jaroslav precisa ver o que aconteceu com um dos filhos no jardim da sogra, mas ela só dará a chave se Joroslav convencer a mãe de dar o apartamento dela para a esposa, Blanka. A mãe, por sua vez só dará, o apartamento se o sogro cozinhasse e o sogro só irá cozinhar sob outra motivação e assim sucessivamente. Cozinhar F*der Matar atira para vários lados durante esses ciclos, mas não faz questão de fechar nenhum raciocínio sobre o que cada um deles comunica exatamente, nem deixar claro se esses não fechamentos são propositais.

Dá para intuir algo sobre relações abusivas, inescapáveis. Quando, em meio ao sequenciamento de favores, um deles não é cumprido, algo trágico acontece, reiniciando o ciclo sobre uma nova ótica, mas não exatamente de onde ela começou. O retorno se dá na mesma cena em que a tragédia ocorre, só que num contexto mudado pela fala prévia de um personagem antes de acontecer a tragédia. “Isso não teria acontecido, se você fosse assim”; corta, e o filme continua numa realidade onde o personagem é exatamente aquilo que o outro disse que se fosse, seria algo diferente. E de fato o é, mas só por um tempo, porque essa troca contínua de favores persiste e, em algum momento, alguém falhará para uma nova realidade surgir e repetir tudo outra vez. O problema é que nem sempre essas falhas estão direcionadas para a questão do abuso, e se conectam no filme porque o abuso é reflexo de um costume criado sob diversas repetições de práticas possessivas, práticas essas articuladas quando o filme flerta no surrealismo, mas não necessariamente é algo de circunstâncias irreversíveis.

Poderia funcionar se a decupagem soubesse adentrar nessas sequências mais surreais, mas elas soam deslocadas, gratuitas de um choque psicológico ou gráfico (pra que mostrar aquela menina no rio?), que como mencionado, não condiz com a câmera na mão realista, muito menos com o determinismo pregado pelos ciclos da história. Ainda que o roteiro olhe para essa temática de forma multifacetada (família, casamento, dentre outros), de duas uma: Ou o determinismo é uma provocação (e se for, não tem qualquer substância dramática para sustentá-lo reflexivamente), ou ele traz uma contradição na forma com a intenção do conteúdo. O pior é que nem dá para apontar da onde ela surge, porque o cinismo dos diálogos indica que nenhum ali presta, gerando uma anomalia moral entre a isenção total e o completo maniqueísmo. E aí, como se não bastasse ser confuso como história, o filme se torna confuso também em linguagem e propósito.

Alie isso a metáforas à parte dessa lógica cíclica que também não se conectam e o caráter teoricamente desafiador do longa se torna um desafio para ser assistido até o fim. Por mais que goste de filmes confusos, o “não entender” aqui não gera um estímulo de curiosidade, apenas distância de seja qual lá for a intenção estrutural buscada. Era para ser um estudo de personagem? De circunstância? De uma família tradicional? Era e não era, porque nada é decidido com clareza  por Fornay. Uma pena, porque houve potencial na teatralização de certas situações promissoras que acabam não dando em nada.

Cozinhar F*der Matar (Cook F*ck Kill | República Tcheca-Eslováquia, 2019)
Direção: Mira Fornay
Roteiro: Mira Fornay
Elenco: Jaroslav Plesl, Petra Fornayová, Regina Rázlová, Jan Alexander, Jazmína Cigánková, Irena Bendová, Roman Lipka, Mária Surková, Mária Fornayová, Emil Fornay, Lucia Steinerová, Cyprián Sulej, Tereza Krasnanská, Michaela Hollá
Duração: 116 minutos

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