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Crítica | Crime Verdadeiro

por Michel Gutwilen
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Há de se notar o paralelismo entre o primeiro e o último plano de Crime Verdadeiro, filme que fecha a década de 90 para Clint Eastwood como diretor. Num, a câmera flutuante vai em direção à prisão. Já noutro, o rosto do protagonista-ator está em evidência com um prédio desfocado ao fundo, até que o primeiro plano se transforma em um plano geral e o protagonista caminha para fora do quadro, restando apenas o grande edifício que agora se faz claro como sede do jornal Tribune. Portanto, o que há em comum entre início e o fim é a presença dessas duas instituições basilares da sociedade norte-americana que dialogam ao longo de toda a narrativa, mediadas pelo personagem de Clint Eastwood. Inclusive, a permanência da Instituição em detrimento do Homem já indica muito do que o próprio filme representa: a busca pela Verdade é menos um ato individualista e altruísta, mas apenas mais um dia no trabalho. 

Porém, a equação envolvendo os Estados Unidos não se limita apenas a essas duas incógnitas. De modo algum se trata de uma história simplista, mas uma repleta de outras variáveis, tornando esse sistema muito mais complexo. A religião presente no padre vivido por Michael McKean; o espetáculo midiático (a rádio noticiando até a última refeição do prisioneiro); o racismo explícito e estrutural; além da própria crise moralista individualista representada pela entrega do protagonista à devassidão e boemia. Tudo isso vai aparecendo, uns com mais enfoque e outros nem tanto, como forças que o falho protagonista Steve Everett deve enfrentar, tanto a nível externo quanto interno. 

Aliás, “enfrentar” talvez não seja a palavra adequada para as verdadeiras ações deste homem, que não é nenhum mocinho altruísta. Não é uma dialética, mas um homem movido pela verdade como meio de satisfazer a si mesmo. Um faro, como ele diz, sua natureza. Em um momento do longa, a mulher de Beechum pergunta porque ele não havia feito nada até aquele dia, para receber a resposta de que ele não havia se designado ao caso. Na cabeça do protagonista isso faz sentido, pois ele não possui um dever com a sociedade, mas é apenas um cumpridor de tarefas para aquilo que é designado. Portanto, “superar” seja o melhor termo aqui, pois todos estes sintomas que representam a doença do próprio homem e da sociedade afastam ele de cumprir sua meta, esta que relaciona com a busca da Verdade. São obstáculos em seu pathos individual e profissional. 

Basta ver este ponto na própria relação de Crime Verdadeiro com o racismo. Como se todo filme de Clint Eastwood já não gerasse interpretações variadas quanto ao seu ativismo político, esta temática também não gera respostas fáceis ao espectador. Desde o momento que Everett assume a investigação, ele já pergunta se “as testemunhas eram brancas ou negras?”, deixando claro sua total desconfiança frente à Justiça do sistema e se mostrando como um homem engajado. De fato, o que vai se desenrolando parece levar a crer que esse é o principal viés da obra, quase uma história aqui de culpa branca na qual o jornalista caucasiano salva o homem negro da morte, enfrentando o próprio sistema que ele está inserido. Contudo — e talvez por isso tenha interessado tanto a Clint adaptar esta história — Crime Verdadeiro vai para um caminho completamente diferente ao revelar que o verdadeiro assassino também era um menino negro. O que isso então representa tematicamente? A bem da verdade, é que a realidade não é tão simples como parece e traz dessas ambiguidades na vida. Como o próprio título indica, esta é uma jornada sobre a busca da Verdade, e caberá ao protagonista ir atrás dela, independente das discussões que rodeiam a situação. Aliás, a conversa com Beechum, na qual ele afirma não se importar com Deus, mas apenas seu nariz, não poderia ser mais clara. 

Neste sentido, conforme Everett vai cada cada vez mais se aproximando da verdade e superando seu problemas, é curioso observar a própria mudança de tom e ritmo narrativo. De início, o ambiente jornalístico é retratado pesadamente com humor, em um clima descontraído e cheio de piadinhas. Um jornalismo essencialmente desfocado. Posteriormente, nesta tomada de consciência, há menos cenas de alívio cômico e maior urgência na montagem, através de artifícios clássicos hollywoodianos, conforme a luta com o relógio se aproxima, culminando na bem usada montagem paralela que alterna entre o processo da cadeira elétrica e Clint chegando na casa do governador. Por outro lado, quando Everett tenta fazer mais do que ele humanamente conseguiria, sua afobação gera consequências práticas, em outra boa sequência, que se passa dentro do zoológico, na qual ele sacrifica um momento com sua filha (criativamente) para ser mais produtivo no trabalho. Afinal, é realmente um workaholic que precisa (no imperativo) resolver aquilo que aparece diante dele.

Voltando a lógica de que nenhum obra eastwoodiana é fácil como parece, não deixa de valer a seguinte observação: a sequência final é um sonho ou real? Obviamente, o que acontece ali foge da verossimilhança que perpassa todo o restante do longa. O mendigo encontrado anteriormente vira agora Papai Noel, Everett ganha um Pulitzer e, coincidentemente, encontra o homem que salvou na rua. Claro, é possível que se trate de uma grande liberdade poética. No entanto, há margem interpretativa para que tudo seja um sonho, uma vez que que jamais revela se o condenado foi salvo a tempo. Assim, nada mais genial do que subverter todas as expectativas e trazer uma ambiguidade ao encerramento de uma narrativa que, justamente, se baseia na obsessão da busca pela verdade.  

Crime Verdadeiro (True Crime) — EUA, 1999
Direção: Clint Eastwood
Roteiro: Larry Gross, Paul Brickman, Stephen Schiff (baseado na obra de Andrew Klavan)
Elenco: Clint Eastwood, Isaiah Washington, LisaGay Hamilton, James Woods, Denis Leary, Bernard Hill, Diane Venora, Michael McKean, Michael Jeter, Mary McCormack, Hattie Winston, Penny Bae Bridges, Francesca Eastwood
Duração: 127 minutos

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