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Crítica | Crimes e Pecados

por Luiz Santiago
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Mas definimos a nós mesmos pelas escolhas que fizemos. Na verdade, somos feitos da soma total das nossas escolhas. Tudo se dá de maneira tão imprevisível, tão injusta, que a felicidade humana não parece ter sido incluída no projeto da Criação.

Com motivos de Crime e Castigo, de Dostoiévski, aos quais Woody Allen voltaria em Ponto Final, O Sonho de Cassandra e O Homem Irracional, o longa Crimes e Pecados é praticamente um filme-resposta do diretor a outro de seus filmes, Hannah e Suas Irmãs, obra na qual ele dizia ter sido “bonzinho demais” com os personagens. Segundo sua visão, a família e as relações entre as pessoas passavam por um caminho bem mais árido e bem menos lírico ou caloroso que naquele filme. Daí a ideia de realizar algo que envolvesse boa parte daqueles temas tão bem conhecidos mas sob uma perspectiva mais intensa e com um grande simbolismo logo de início, a metáfora da “miopia de vida” do homem e, possivelmente, de Deus.

Com uma mistura de Monsieur Verdoux (1947) e Morangos Silvestres (1957), Allen nos chama a atenção para aquilo que faz o homem ser o que ele é, o conjunto de suas escolhas, principalmente aquelas escolhas tomadas em momentos de crise, medo, ira ou grandes paixões. Mas há também uma linha cômica que perpassa a história de uma maneira cínica, como se quisesse sugerir algo muito sério sob um ponto de vista peculiar, chamar a atenção ou de fato incomodar o espectador pela densidade de suas observações e visão da realidade. É por isso que Crimes e Pecados é um marco na filmografia de Woody Allen. Ele é o último filme que teve essa coragem e essa abordagem dentre as suas “obras clássicas”.

O enredo da fita é a vida de dois homens, um consumido pela culpa e outro tentando encontrar um grande amor. Mas é curioso que essas são apenas máscaras iniciais porque culpa, desejo e busca são elementos que circulam pela vida dos dois, embora seja mais forte aqui e ali, dependendo do momento, dos familiares ou cônjuges/amantes envolvidos. Dessa forma, Woody Allen faz um jogo de responsabilidades e julgamentos a partir de elementos simples do cotidiano, só que expostos a condições extremas, como por exemplo, o fato de uma amante querer de todo modo conhecer a esposa do homem com quem está a tantos anos ou, em outra ponta, o fato de um homem que odeia o cunhado ter que dirigir um documentário sobre ele.

Novamente trabalhando com o fotógrafo Sven Nykvist, o diretor utilizou bem os ambientes sombrios e de luz dura para desenvolver cada um dos personagens, mesmo que suas preocupações e vontades fossem simples demais comparadas aos grandes conflitos de Judah (Martin Landau) e Cliff (Woody Allen), a exemplo das personagens vividas por Mia Farrow ou Claire Bloom. Essa simplicidade é quebrada por adversidades que contestam o âmago da moral e da ética seculares e religiosas, como a pergunta do por quê existe maldado no mundo; por quê alguns fieis acabam sofrendo tanto enquanto outros infiéis vivem bem, muito e [aparentemente] felizes; e por quê a felicidade não pode durar mais do que apenas um breve e fugaz espaço de tempo.

Através das decisões de cada um, vemos que esses questionamentos apontam mais como uma quebra em relação à conformidade (de um paraíso vindouro onde tudo será maravilhoso ou de um otimismo cego dizendo que “tudo vai ficar bem, basta confiar nas leis“) do que como críticas diretas e “batidas” por parte do diretor. Em Crimes e Pecados, as muitas fases da vida, as escolhas em cada uma delas, as pessoas que são escanteadas, decepcionadas, mortas ou abandonadas no processo servem como trampolim para o “crescimento” dos envolvidos, o que acaba dando origem a situações que — ponto máximo da ironia — as mesmas perguntas feitas anteriormente voltam, como se fossem companheiras constantes do homem, não importando a fase. A diferença que é no “momento B” existe muito mais gravidade, rancor e medo do que no “momento A”. E é ainda mais interessante que nessas situações, diríamos que o indivíduo do “momento B” é alguém “maduro”.

Esse preço da maturidade, da experiência de vida, do acostumar-se com o horror e o sofrimento são temáticas nas entrelinhas de Crimes e Pecados e colocadas ou como observação ou como análise de ações. Em uma narrativa ousada cheia de idas e voltas, o longa mostra um Woody Allen plenamente seguro na direção de um drama denso e com uma linguagem que foge muito da simplicidade cômica que muitos de seus espectadores antigos esperavam e lhe cobravam. Os flashbacks são tão orgânicos e recebem uma montagem tão boa que chamam a nossa atenção e complementam a história de uma forma inesperada, sem nos desviar a atenção e ‘escondendo’ o fato de serem pontes narrativas dentro do próprio filme.

Trazendo um grande elenco em excelente atuação (Martin Landau recebeu uma indicação ao Oscar) e um roteiro e direção quase exemplares (Woody Allen foi indicado ao Oscar nas duas categorias), Crimes e Pecados finaliza a década de 80 e mais uma fase na carreira de Allen de forma digna e inesquecível. Um drama para fazer pensar sobre consequências e, talvez, felicidade. Afinal de contas, muitas ocasiões em que as duas palavras do título acontecem acompanham [algum tipo de] felicidade para quem os comete. E isso é ainda mais problemático, porque nos deixa com uma pergunta final: a felicidade tem um preço?

Crimes e Pecados (Crimes and Misdemeanors) — EUA, 1989
Direção: Woody Allen
Roteiro: Woody Allen
Elenco: Woody Allen, Bill Bernstein, Martin Landau, Claire Bloom, Anjelica Huston, Alan Alda, Sam Waterston, Stephanie Roth Haberle, Gregg Edelman, George J. Manos, Jenny Nichols, Joanna Gleason, Zina Jasper
Duração: 104 min.

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