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Crítica | Cruella

por Iann Jeliel
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Cruella

Cruella já parte à frente dos demais live-actions dessa safra de remasterizações das animações Disney só de ter uma história nova, ao invés de uma simples transcrição da narrativa animada para atores de carne e osso. Não que não seja possível fazer uma dessas transcrições de modo bem-feito, mas naturalmente aquelas adaptações ficavam dependentes da recriação de um efeito passado pela fantasia da animação que simplesmente não pode corresponder a mesma verossimilhança do lúdico numa fantasia encenada por pessoas. São processos que não se conversam tão facilmente, readaptar uma história concebida para uma linguagem em outra tem um caminho bem mais complexo do que parece. Caminho que a Disney não estava disposta a correr. Assim, prendia os filmes numa gaiola nostálgica de agrado ao público, tendências sociais e exigências da indústria, contando com o efeito passageiro dessa nostalgia para lucrar bem em cima da marca que consolidou. Um lucro vindo de um preço a pagar, artificializando essas boas histórias, antes tão bem contadas, a um lugar comum.

Quando se tem uma história nova, por mais que seja com personagens e elementos já criados nos filmes animados, existe uma base para criar uma ludicidade do zero, que não necessariamente precisa corresponder ao efeito da fantasia da animação, mas pode recriá-la de modo a encaixar no ambiente realista. Isso por si só não é suficiente para um bom filme, basta vermos o caso de Malévola que foi a primeira tentativa da Disney de fazer um filme de origem de vilã, a quem até conseguiu dar uma motivação plausível para suas ações, mas acabou tornando-a boa moça, no fim das contas. Em Cruella, temos de fato a origem de uma vilã, com uma motivação bem desenhada, empática e carismática, mas que não anula sua natureza ladra, psicótica e autodestrutiva pela genialidade que lhe foi concebida para o mundo da moda. Claro, tudo isso dentro do nível que a Disney permite para não sair do tom ambiente familiar. Portanto, não é também um filme supercorajoso, “diferente”, um “estudo de personagem” complexo e adjetivos/paráfrases afins. Estruturalmente, não está nem tão distante do que apresenta um filme de origem de super-heróis, e o fator diferente de apresentar uma dupla personalidade da protagonista, como forma de transicionar seu lado vilanesco, também não é um recurso que já não tivéssemos visto. Mas na real, o filme nem precisa ser tão original assim.

A grande diferença de Cruella está na sensibilidade da execução de cada etapa da história, e a Disney, como ninguém, sempre demonstrou como contar boas histórias, mesmo que para isso busque mais um encaixe ideal de autores e casting correspondentes a suas necessidades do que dá ampla liberdade a eles para fazê-las ao seu modo. Nesse caso, como na maioria dos bons filmes da empresa, uma coisa naturalmente leva a outra. Craig Gillespie e seu estilo de comédia ácida, sarcástica, mas que ainda busca um tom pop e leve para criar uma comunicação do público com seus personagens falhos e/ou sofredores, é exatamente o que Cruella precisava para não sair do tom infantil sem desligar seu lado anárquico. Tal como a história do filme é o ambiente ideal para que o diretor trabalhe suas características em um equilíbrio entre drama e comédia se ajudando mutuamente para conceber uma grande personagem, algo que ele não havia conseguido atingir até então na carreira, derrapando em um dos lados por causa do outro – com essa afirmação, sim, estou dizendo que não gosto de nenhum de seus filmes até este, incluindo o aclamado Eu, Tonya, pelos motivos apontados, mas isso não vem tanto ao caso.

Fora que outros elementos de sua autoria surgem como bônus ao encaixe. Por exemplo, o diretor tem uma preocupação bastante nobre em dar profundidade e perspectiva dramática aos seus personagens mais secundários, tornando os capangas de Cruella algo bem mais interessante do que os capachos desprovidos de inteligência que eles são na animação. Ainda funcionam como bons alívios cômicos, mas usá-los como questionadores da jornada de vilania da Cruella fornece aquela fonte de identificação familiar procurada para dar carisma à vilã e até uma tensão de qual o nível de crueldade a que ela pode chegar até o clímax, tendo em vista que a relação entre o trio fica em jogo a depender de como ela lidará com o espírito de vingança construído na história. A dupla devidamente escalada por Joel Fry e Paul Walter Hauser traz o indício de outro grande ponto forte do diretor: a direção de seu elenco. Tanto eles quanto os demais do elenco de apoio estão devidamente adequados naquela atmosfera britânica caricata, recortada no universo da moda, cujos design de produção e figurinos estão absolutamente deslumbrantes. Naturalmente, essa condução junto à valorização dos personagens deixa o caminho livre para as performances elevarem o material do texto.

Emma Stone e Emma Thompson fazem isso com primor. Ambas estão excelentes e são obviamente o maior destaque do live-action por participarem ativamente do principal núcleo da história. Uma interessantíssima rivalidade entre mulheres que socialmente precisam se impor para conseguirem respeito e destaque no seu local de trabalho, consequentemente perdendo um pouco da humanidade no processo de chegada ao poder. Não chega a ser um filme carregado desse discurso da consequência social, algo que a Disney vinha tendo como demanda em outros live-actions em tornar suas animações mais representativas do que já eram (nesse caso, nem tinha como fazer isso por se tratar de uma história nova). Tampouco são sinônimos de dilemas traumáticos aprofundados consolidando as construções das duas personagens, até porque, como dito, não é intenção do filme ser “diferentão” fora da sua raiz de entretenimento. Portanto, essas amarras do texto acabam fazendo muito sentido como ferramenta para apimentar o confronto – tal como aquela pequena inserção de conexão hereditária – em níveis pessoais maquiavélicos e devidamente divertidos.

PEQUENOS SPOILERS

Digo isso porque, a princípio, Cruella começa problemático em algumas escolhas clichês de progressão da história, mas logo mais ele consegue subvertê-los dentro do escalonamento da rivalidade que vai liberando, pouco a pouco, a icônica vilã da animação. Há quem irá questionar que ela não termine o filme exatamente como estava em 101 Dálmatas – uma constatação óbvia diante da idade dela nessa história para a próxima história – de modo a não parecer plausível que um dia ela queira realmente por peles de cachorros em suas vestimentas, visto que ela tem uma construção de afeto por seus companheiros de estimação. De fato, o filme releva esse ponto porque havia o risco de quebrar o equilíbrio no tom, mas existem sim cenas de ambiguidade dela olhando dálmatas, deixando implícita a possibilidade futura, projetando a crescente de psicopatia conforme o tempo e o poder. De qualquer forma, para essa história isso não interessa tanto. Apesar das conexões afirmarem ser um filme de origem da vilã para a animação, seu grande triunfo, como dito, é estar fora das dependências dessas conexões. Tomara que a Disney aprenda a partir daqui que esses live-actions estão aí para contar as outras interessantíssimas histórias derivadas de suas animações.

Cruella (Idem | EUA, 2021)
Direção: Craig Gillespie
Roteiro: Dana Fox, Tony McNamara (Baseado no universo da obra literária de Dodie Smith)
Elenco: Emma Stone, Emma Thompson, Mark Strong, Joel Fry, Paul Walter Hauser, Emily Beecham, Kirby Howell-Baptiste, Tipper Seifert-Cleveland, John McCrea, Kayvan Novak, Jamie Demetriou, Abraham Popoola, Leo Bill, Javone Prince, Steve Edge, Paul Chowdhry, Ziggy Gardner, Joseph MacDonald, Niamh Lynch, Andrew Leung
Duração: 134 minutos

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