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Crítica | Cupido Não Tem Bandeira

por Ritter Fan
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Alguns dos policiais da Alemanha Oriental eram rudes e desconfiados. Outros era desconfiados e rudes.
– McNamara, C.R.

Treze anos depois de A Mundana, de 1948, Billy Wilder retorna para a Berlim Ocidental pós-guerra para filmar uma enérgica e hilária comédia baseada em peça de 1929 do húngaro Ferenc Molnár que funciona, também, como uma “irmã espiritual” de Ninotchka, de Ernst Lubitsch, que ele co-roteirizara antes de imigrar para os EUA, em mais uma demonstração de sua admiração pelo cineasta alemão. Em parceria com I.A.L. Diamond, com quem escrevera os espetaculares e bem mais lembrados Quanto Mais Quente MelhorSe Meu Apartamento Falasse nos dois anos anteriores e com quem escreveria todos os seus demais filmes (com apenas uma exceção), Cupido Não Tem Bandeira merece facilmente um lugar de destaque no panteão das comédias do diretor.

Passada alguns meses antes do fechamento completo da fronteira entre Berlim Ocidental e Oriental – na verdade, a equipe de produção estava lá quando o evento ocorreu – a história lida com C.R. “Mac” MacNamara (James Cagney), um ambicioso executivo do alto-escalão da Coca-Cola, tendo que servir de babá para a fogosa Scarlett Hazeltine (Pamela Tiffin), filha de 17 anos de seu chefe em Atlanta que, não demora, se casa com Otto Ludwig Piffl (o alemão Horst Buchholz, que acabara de ganhar proeminência em Hollywood depois de seu papel em Sete Homens e um Destino), um orgulhoso e jovem comunista. Ver o conflito político da Guerra Fria ser reduzido – sem amarras – a uma comédia de teor romântico (hesito em classificar o filme como comédia romântica) é sensacional, com o roteiro afiado de Wilder e Diamond não deixando pedra sobre pedra seja do lado comunista, seja do lado capitalista, despejando abordagem satírica para todos os lados.

Claro que é possível que a turma do “é só mais um filme patriótico e ufanista americano” pare por aí mesmo, não enxergando mais do que um palmo a frente de seus olhos, pois Cupido Não Tem Bandeira (um dos raros títulos em português infinitamente melhores que o original, aliás) é tudo menos patriótico e ufanista. No mínimo dos mínimos ele usa esses sentimentos para desenhar o personagem de Cagney como um homem egoísta que trai sua esposa com a voluptuosa secretária loira alemã (Fräulein Ingeborg, vivida por Liselotte Pulver que parece encarnar Marilyn Monroe), e é capaz de qualquer coisa para subir na carreira, inclusive armar para prender um homem e ensinar que a Guerra de Secessão acabou em “empate”. Se o lado comunista é alvo de muita – MUITA – galhofa benigna, o lado capitalista é igualmente esculhambado em um equilíbrio de forças raro de se ver por aí (MacNamara com um relógio cuco que no lugar de um cuco tem o Tio Sam balançando uma bandeira americana ao som de Yankee Doodle que toca diversas vezes ao longo do filme é um exemplo do patriotismo exacerbado sendo usado de maneira crítica).

Ok, então vocês até podem mandar um homem para a lua primeiro, mas se ele quiser uma Coca no caminho, terá que vir a nós.
-McNamara, C.R.

Mas Wilder sabia que, para além de um roteiro azeitado, ele precisava de alguém para ser sua estrela e a escolha de James Cagney foi absolutamente perfeita, ainda que tenha sido esse filme, pelo trabalho imenso que deu ao ator – ele fala suas linhas quase sempre gritando e seu personagem deve ter 80% do texto do roteiro só para ele! – e também pelo ciúmes que sentiu de Buchholz que, segundo ele, fazia de tudo para ofuscá-lo (sem conseguir vale dizer) que o tenha feito largar Hollywood por 20 anos. O ator simplesmente domina cada fotograma em que aparece, mesmo que o restante do elenco esteja todo ele ótimo. Mas não há jeito e Cagney é onipresente e hilário todo o tempo daquele seu jeito irritadiço de ser, com direito a terno, chapéu e charuto para ajudar a compor visualmente seu cativante personagem. É como um rolo compressor, algo amplificado pelo ritmos aceleradíssimo da fita que faz sua até humilde duração passar muito rapidamente, com direito a um mar de gostosas gargalhadas por quase todo o tempo.

Confesso que incomoda um pouco o longa parecer uma peça publicitária da Coca-Cola (diz a lenda que Joan Crawford, que acabara de ser eleita para a diretoria da Pepsi-Cola, ligou indignada para Wilder, o que teria resultado na inserção de menções à bebida rival, incluindo o famoso final), mas a grande verdade é que era essencial que um grande e plenamente reconhecível símbolo do capitalismo e consumismo americano fosse onipresente como parte da estrutura crítica do roteiro. É como se o mero fato de McNamara ser um executivo da empresa em Berlim fosse uma gag constante. Aliás, o mesmo vale para a maneira como Wilder aborda os alemães ocidentais em geral, amplificando a abordagem hesitante que ele usou em A Mundana: são todos nazistas ou nazistas em potencial, algo perfeitamente encapsulado por Schlemmer (Hanns Lothar), assistente de McNamara que só fala com o chefe batendo os calcanhares, com uma revelação nada surpreendente sobre seu passado ao final e pela ponta de Henning Schlüter como o Dr. Bauer que orgulhosamente – e não sem querer – assovia Wagner.

Cupido Não Tem Bandeira é um primor cômico de Wilder que parece que ficou “perdido” em sua filmografia em razão das suas duas obras imediatamente anteriores, mas que sem dúvida merece ser escavada e lembrada como mais uma de sua mais do que invejável filmografia. Roteiro no estilo metralhadora giratória, direção elegante e veloz, elenco sensacional com destaque absoluto para Cagney resultam em um daqueles longas que dá enorme prazer em assistir e que deixa um sorriso no rosto por muito tempo depois que acaba só relembrando do sem-número de frases memoráveis que ele contém.

Por favor. Nada de cultura, só grana.
– McNamara, C.R.

Cupido Não Tem Bandeira (One, Two, Three – EUA, 1961)
Direção: Billy Wilder
Roteiro: Billy Wilder, I.A.L. Diamond (baseado em peça de Ferenc Molnár)
Elenco: James Cagney, Horst Buchholz, Pamela Tiffin, Arlene Francis, Liselotte Pulver, Hanns Lothar, Howard St. John, Leon Askin, Ralf Wolter, Peter Capell, Karl Lieffen, Hubert von Meyerinck, Sig Ruman, Loïs Bolton, Til Kiwe, Henning Schlüter, Karl Ludwig Lindt, Friedrich Hollaender
Duração: 104 min.

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