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Crítica | Curtas de Manoel de Oliveira (1931 – 2015)

por Luiz Santiago
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O cineasta Manoel Candido Pinto de Oliveira nasceu na cidade do Porto, em Portugal, no dia 11 de dezembro de 1908 e faleceu na mesma cidade, em 2 de abril de 2015. Ao longo de seus 84 anos de carreira, ele construiu um cinema bastante particular, com características sempre reconhecíveis: câmera majoritariamente parada, uso do máximo de elementos possíveis de um quadro como um canal para enriquecer as cenas (e a história, como um todo, através de símbolos) e exigência de um modelo dramatúrgico bastante teatral de seu elenco. Religião, família, filosofia, feminilidades e literatura foram temas recorrentes em sua jornada cinematográfica. No presente compilado, trago comentários para os curta-metragens do diretor desde a sua estreia em 1931, com Douro, Faina Fluvial, até Um Século de Energia (2015).

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Douro, Faina Fluvial

1931

Primeiro filme dirigido por Manoel de Oliveira, Douro, Faina Fluvial é um documentário experimental que guarda uma série de semelhanças com os curtas da época, que, de uma maneira inovadora, mostravam o cotidiano de uma cidade: as pessoas trabalhando, as aventuras e desventuras do homem comum, num lugar comum.

Filmado na cidade do Porto, na foz do Rio Douro (terceiro rio mais extenso da Península Ibérica), o curta reúne imagens desconexas entre si, mas conectadas através do ideal de mostrar o movimento de uma localidade, algo mais ou menos parecido com Berlim – Sinfonia da Metrópole (1927) e O Homem da Câmera (1929), obras que, não por acaso, eram dois dos filmes favoritos do diretor.

Por ser um filme mudo, vanguardista e preocupado em capturar o ritmo da realidade de uma região portuária, o espectador perceberá que nem sempre as imagens escolhidas ou o ritmo da montagem são as melhores para transmitir essa realidade, mas a ideia de ciclo no trabalho cotidiano, os encontros e desencontros, acidentes, comércio, navegação, alimentação, brincadeiras, divertimento… tudo está condensado e é mostrado aqui de uma perspectiva distanciada (pontes, céu, panorâmicas) até o momento mais pessoal do indivíduo, com um primeiro plano capturando as suas emoções. Um início cinematográfico bastante antenado aos experimentos com imagem de seu tempo. A boa chegada do grande Manoel de Oliveira ao cinema.

Douro, Faina Fluvial (Portugal, 1931)
Direção: Manoel de Oliveira
Duração: 20 min.

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Famalicão

1941

Filmado em 1940 mas lançado oficialmente em 27 de janeiro de 1941 (por isso as divergências de indicação do curta como sendo de um desses dois anos) Famalicão é, em muitos aspectos, uma continuação de Douro, Faina Fluvial, lançado dez anos antes, na estreia de Oliveira na direção. E eu digo isso levando em consideração a essência dos dois filmes: obras que se dispõem a mostrar o cotidiano da população numa determinada cidade e espaço de tempo. Ambos os curtas são crônicas de trabalho, de vivências e trajetos pela região, mas na forma de abordar as mesmas questões, o diretor segue um caminho diferente em cada uma das películas, mostrando o amadurecimento e refinamento de sua linguagem e maneira de guiar um filme.

Diz-se que Manoel de Oliveira chamou Famalicão de um “filme feito a pedido, e para manter o exercício“. Desde a sua estreia atrás das câmeras, em 1931, ele já tinha dirigido também os curtas Hulha Branca (1932), Estátuas de Lisboa (1932), Os Últimos Temporais: Cheias do Tejo (1937) — percebam o hiato de cinco anos entre um curta e outro! –, Já Se Fabricam Automóveis em Portugal (1938) e Miramar, Praia das Rosas (1938), de onde vieram mais dois anos de hiato até as filmagens de Famalicão em 1940, mais a sua estreia, no início do ano seguinte. Esses momentos de pausa cinematográfica também contribuíram para que o diretor posteriormente escolhesse, em definitivo, a sua carreira, e então se dedicasse inteiramente a esculpir as muitas histórias reais e fictícias que Portugal tinha para oferecer.

Em Famalicão, temos a narrativa de uma região que, aos poucos, vai conhecendo a modernidade. Partimos dos encontros entre moradores ilustres e forasteiros entediados até comentários sobre a casa de Camilo Castelo Branco, sobre a grande feira e sua variedade de produtos, sobre a indústria de tecidos, botões, madeira e relógios, sobre a malha agrária cada vez menor e as novidades da grande cidade que chegam à vila… O diretor mostra, agora de maneira não experimental, como os avanços tecnológicos da cidade que pulsava em Douro chegaram a outras regiões do país. E aqui vale uma nota para a excelente narração de Vasco Santana, com momentos muito engraçados na parte final do filme, que nos deixa com aquela amargura de despedida; o adeus para um lugar que, em poucos anos, teria seus costumes e estrutura completamente mudados. O tempo e a modernidade ainda lado a lado num lugar em incansável transformação.

Famalicão (Portugal, 1941)
Direção: Manoel de Oliveira
Roteiro: Manoel de Oliveira
Elenco: Vasco Santana (narração)
Duração: 24 min.

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O Pintor e a Cidade

1956

Depois de dirigir o seu primeiro longa-metragem, o excelente Aniki Bóbó (1942), Manoel de Oliveira demorou 14 anos para voltar a assinar um filme. Seu retorno se deu justamente neste curta O Pintor e a Cidade, mais um exercício de exploração do espaço urbano, só que desta vez, pelo olhar de um pintor, vivido por António Cruz. O modelo de exposição da cidade como um grande ser vivo e a representação de suas formas, às vezes difusas, através das aquarelas do pintor, são a grande atração da primeira parte do documentário, que é excelente.

Nesse primeiro momento, estamos diante de um jogo de visões. O cinema nos mostra pedestres, carros, construções. A câmera de Oliveira é menos inquieta e menos pessoal se compararmos com a abordagem que ele deu à cidade em Douro e Famalicão. O “objeto de estudo” é visto quase com indiferença. Pessoas e estrutura urbana existem aqui como contexto para algo diferente, para um olhar artístico que captura a alma do que o olho vê fora das pinceladas.

E este é o grande problema do filme em sua segunda parte. A cidade é que vai ganhando cada vez mais espaço e o pintor quase desaparecendo, assim como suas pinturas. Só temos um retorno, de fato, dessas representações, no final do filme, após um afastamento que é difícil entender por quê, o que torna o curta menos interessante (embora com resultado positivo no final) do que aparentava à primeira vista.

O Pintor e a Cidade (Portugal, 1956)
Direção: Manoel de Oliveira
Roteiro: Manoel de Oliveira
Elenco: António Cruz
Duração: 26 min.

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A Caça

1964

Manoel de Oliveira já tinha tido problemas com a censura de Salazar por ocasião de seu filme Acto da Primavera (1963), então não foi novidade para ele quando recebeu a ordem de que deveria alterar o final de seu curta-metragem A Caça (1964), criando uma situação feliz para uma tragédia que era, em muitas medidas, um olhar do diretor para o que acontecia em seu país naquele momento. Só em 1988 ele conseguiu relançar o filme com o final que originalmente tinha pensado. O horror do abandono do próximo em tempos de conflitos e necessidades sociais é a grande questão aqui.

Na história, conhecemos dois garotos que saem para caçar com estilingue. São dois amigos que vivem se provocando, mas, desde os primeiros momentos, a dinâmica entre eles mostra a sagacidade de um sobre a docilidade do outro. Não há, no entanto, uma demonização por parte do roteiro para nenhum dos dois meninos. Mesmo as provocações, os empurrões e as pequenas maldades são entendidas como parte da relação entre os dois, muito embora isso já possa ser entendido como parte dos símbolos e comportamentos sociais que as duas partes representam nessa história. E do meio para o final, essa relação vai ficando cada vez mais forte, até que o próprio meio natural “pune o mais fraco”.

O encerramento da obra, infelizmente, é muito abrupto (o original, já que nem dá para considerar aceitável o absurdo incoerente da versão censurada, com o louco final feliz). A má atuação do elenco também não ajuda muito. Mesmo trabalhando com não-atores, seria possível executar uma crítica social bem mais sólida, em termos de qualidade, mas o diretor não consegue isso aqui. Ainda assim, o filme se mantém em boa cotação porque seu roteiro é intrigante, cruel, reflexivo e a quantidade de símbolos colocados ao longo dos 20 minutos enriquece a aventura social, tornando-a muito mais profunda do que aparenta. Pena que a execução não acompanha a mesma grandeza.

A Caça (Portugal, 1964)
Direção: Manoel de Oliveira
Roteiro: Manoel de Oliveira
Elenco: António Rodrigues Sousa, João Rocha Almeida, Albino Freitas, Manuel De Sa
Duração: 21 min.

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As Pinturas do Meu Irmão Júlio

1965

Com narração inicial e breve aparição de José RégioAs Pinturas do Meu Irmão Júlio é o tipo de filme sobre arte que normalmente vai dividir opiniões, e isso acontece pela forma como o objeto artístico está representado pelo cinema, ou seja, qual é o olhar do diretor para a artes plásticas. Qual a proposta do filme para fazer da grande tela uma galeria reflexiva? O artista da vez é Júlio Maria dos Reis Pereira (que como poeta assinava Saúl Dias), irmão do escritor José Régio.

Num primeiro momento, acreditamos tratar-se de uma reflexão fraterna, já que as filmagens acontecem na casa familiar, em Vila do Conde, onde Júlio guardava muitas de suas pinturas. Todavia, após algumas poucas frases iniciais, Régio sai de cena e o que temos é literalmente aquilo que o título nos diz, a possibilidade menos interessante possível de se colocar telas pintadas na grande tela do cinema… Quadros atrás de quadros são mostrados; alguns de maneira muito bela e inventiva, outros, nem tanto. O filme tem um pouco a caraterística curiosa de O Pintor e a Cidade, mas não vai além disso. O espectador simplesmente não tem nada mais além da observação passiva de telas do pintor Júlio, que tem uma técnica e uma temática agradáveis de se ver, mais que depois dos 5 minutos ininterruptos só com telas + música, perdem a nossa atenção.

As Pinturas do Meu Irmão Júlio (Portugal, 1965)
Direção: Manoel de Oliveira
Roteiro: Manoel de Oliveira (baseado em obra de José Régio)
Elenco: José Régio
Duração: 15 min.

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O Velho do Restelo

2014

Última ficção dirigida por Manoel de Oliveira, aos 105 anos de idade, O Velho do Restelo é um interessante encerramento (nas ficções) para uma filmografia como a desse diretor. Na obra, Dom Quixote (que também aparece em clipes do longa russo dirigido por Grigoriy Kozintsev, em 1957) surge ao lado de Luís Vaz de Camões, Camilo Castelo Branco e Teixeira de Pascoaes, numa reunião literária e também filosófica sobre o passar dos anos, as conquistas e as derrotas da vida, o amor pelo ofício (qualquer ofício) e a noção de completude de uma missão e herança que se pode deixar para os descendentes (de sangue e ideias).

A conversa entre essas grandes personalidades (e personagem!) da literatura é colocada pelo diretor de maneira que une gravuras de Paul Gustave Doré, uma excelente trilha sonora composta por José Luís Borges Coelho e trechos de filmes do próprio Oliveira, o que deixa tudo ainda mais com cara de despedida. Aparecem aqui referências à minissérie Amor de Perdição: Memórias de uma Família que o diretor realizou em 1978, e também trechos dos filmes ‘Non’, ou A Vã Glória de Mandar (1990), O Dia do Desespero (1992) e O Quinto Império – Ontem Como Hoje (2004). A vida, em O Velho do Restelo é mostrada através de uma metáfora conhecida, mas enriquecida pelo conteúdo do filme. Uma criação que olha para o passado do criador e vê as suas influências de princípio de carreira muito mais perto dele do que fora antes. Muitos significados em um só encontro.

O Velho do Restelo (Portugal, 2014)
Direção: Manoel de Oliveira
Roteiro: Manoel de Oliveira
Elenco: Diogo Dória, Luís Miguel Cintra, Ricardo Trêpa, Mário Barroso
Duração: 19 min.

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Um Século de Energia

2015

Eu poderia fazer uma longa introdução sobre este, que foi o último filme dirigido por Manoel de Oliveira. No entanto, uma introdução mais interessante fica mesmo a cargo das frases que lemos no começo do curta, falando da motivação e da abordagem feita pelo diretor neste seu canto do cisne. Dizem os letreiros…

Em 1932 Manoel de Oliveira filma em homenagem ao seu pai o documentário Hulha Branca, uma história sobre a barragem hidrelétrica do Ermal, fundada pelo mesmo, Francisco José de Oliveira, ele que foi também dono da primeira fábrica de lâmpadas portuguesa. Quase um século depois, Manoel de Oliveira transporta-nos em uma viagem ao mesmo local onde filmou em 1932 e conta-nos a história de um século de energia. Para acompanhar esta história, foram escolhidas duas famílias portuguesas ligadas pela energia da música e pela energia da dança, também elas com mais de um século de história dedicadas à arte.

Existe um quê de memória histórica e familiar nesse filme que é difícil colocar em palavras. As diferentes formas de energia se unem aqui de uma maneira insperada e com um resultado também inesperado. O curta é bem mais do que uma oposição de região de represa mostrada com um espaço de 83 anos entre elas. Claro que isso também acontece e, sim, é algo muito interessante de se ver, mas Um Século de Energia vai além dessa exposição. O diretor consegue passar uma mensagem de pertencimento sem ter uma única palavra falada. Apenas a dança, a música e imagens de um antigo curta-metragem. Uma despedida poética e fortemente ligado ao seu espaço natural. Após o fade final, lemos a seguinte frase: “Manoel de Oliveira deixou-nos durante o processo de pós-produção deste filme, dia 2 de abril de 2015, sem ter visto o resultado final de seu último trabalho“.

Um Século de Energia (Portugal, 2015)
Direção: Manoel de Oliveira
Roteiro: Manoel de Oliveira
Duração: 15 min.

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