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Crítica | Curtas de Michelangelo Antonioni (1947 – 1950)

por Luiz Santiago
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Assim como uma grande parcela dos diretores de sua geração, Michelangelo Antonioni começou a carreira no cinema dirigindo curtas-metragens. O que este compilado de críticas apresenta são os pequenos filmes realizados pelo cineasta, de 1947 a 1950, mesmo ano em que deu início à sua produção mais bojuda até então, Crimes da Alma, o seu primeiro longa-metragem.

Das produções de Antonioni neste período pré-longas, estão faltando apenas três curtas, aos quais não tive acesso. São eles: Roma-Montevideo (1948) e La Villa dei MostriLa Funivia del Faloria, ambos de 1950.
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A Gente do Pó

Gente del Po, 1947

A Gente do Pó foi a primeira coisa que Antonioni realizou atrás das câmeras. Neste curta-metragem de 11 minutos, o diretor, então com 35 anos, apresenta o cotidiano dos pescadores e moradores do vale do Rio Pó, na Itália, da sua reta final até o deságue no Mar Adriático. A apresentação dos hábitos dos ribeirinhos é simples e não totalmente livre de encenação, mas isso não quer dizer que o curta não traga a difícil situação social daquelas pessoas, suas necessidades e o afastamento completo de qualquer ordenança governamental, ao menos na aparência. A narração nos faz observar os hábitos da mulheres lavando rouba no rio, contemplando os barcos e comboios, cuidando dos filhos, costurando. Não há amplitude na abordagem do diretor aqui, ou seja, fora o local (a região do Pó), parece que vemos o mesmo grupo de pessoas filmadas em dias ou situações diferentes.

Há poesia nas imagens — Antonioni já mostrava ter um ótimo olho para composição de planos — e o público compartilha da dor e cansaço dessas pessoas, mas o curta não se aprofunda ou discute as causas, apenas as apresenta. Como parte do Neorrealismo Italiano, o filme serve como um instantâneo da vida de uma parcela da população local no pós-guerra. Uma realidade que demoraria muito para mudar.

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Limpeza Urbana

N.U. – Nettezza Urbana, 1948

Limpeza Urbana, segundo filme de Michelangelo Antonioni, é um outro integrante do Neorrealismo Italiano, mostrando, como o nome diz, alguns garis e varredores de rua na cidade de Roma. De maneira um tanto parecida com A Gente do Pó, temos primeiro a exposição do trabalho dos homens, uma passagem por momentos comuns da região e o retorno desses trabalhadores para casa. A encenação aqui incomoda um pouco, mas o espectador entende bem o que o diretor pretendia mostrar e não há motivos para não comprar a ideia, uma vez que sabemos como funciona a limpeza urbana de grandes cidades e como é o comportamento das pessoas em relação ao seu próprio lixo, desde pequenos pedaços de papel e plástico até lixo orgânico e mais volumoso. Sem cuidado algum, as pessoas jogam o que sobra na rua e muitos até sustentam sua atitude com a frase: “eu tenho que fazer isto pois estou dando emprego para os garis e varredores“. Verdadeiros espíritos de porco embebidos de mesquinharia e falta de educação.

O final do curta é bastante melancólico e vem depois de diversos planos pela cidade que não necessariamente entram no tema do filme — ou seja, mostram mais a sujeira do que a limpeza urbana propriamente dito. Então vemos os trabalhadores voltando para casa, as ruas molhadas e o fim de um dia de trabalho que logo se reiniciará. A ideia de ciclo serve como uma prisão necessária para essas pessoas e, ao mesmo tempo que a ideia de trabalho digno seja colocada em pauta, vemos a situação de vida e o esforço desses trabalhadores e entendemos o por quê naquele período da História o cinema europeu se voltou às condições sociais. Muita coisa precisava ser vista com atenção, repensada e modificada. O cinema era um interessante meio de informação sobre essas condições e, querendo ou não, mesmo antes da fase dos filmes políticos dominarem a cinematografia italiana, um interessante meio de denúncia.

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Sete Canas, Um Vestido

 Sette Canne, un Vestito, 1948

raiom ou rayon é o nome dado à seda artificial, feita de fibra de celulose. Esta característica lhe permite um bom caimento e excelente absorção de tintura. Neste Sete Canas, Um Vestido, Antonioni acompanha a produção do “milagre”, como o narrador define a produção do tecido; desde a colheita da cana até o produto final, com os vestidos prontos e utilizados em desfiles de moda. A câmera captura o trabalho dos agricultores e vai até a indústria, seguindo os talos da planta, levados até o “castelo”, ou seja, à fábrica onde acontecerá o complexo processo de transformação. Passando pela moenda e pelos ajustes químicos necessários para se chegar à substância viscosa que gerará o tecido, visitamos espaços diferentes do setor de fabricação do raiom.

O filme ganha o público pela objetividade com que explica o processo e como nos faz ver o imenso trabalho e os diferentes grupos de trabalhadores envolvidos em um único aspecto da indústria têxtil de Torviscosa, onde a obra é filmada. Essa característica de imaginar camadas diferentes e avaliar o todo, após termos contato com a experiência mostrada em um filme, será um dos caminhos favoritos do diretor nos anos seguintes, sempre provocando o público através de silêncios e de exposição cuidadosa e esteticamente aplaudível de fatos e questões a serem discutidas. Ele perde um pouco a mão na passagem da produção do tecido para a chegada dos vestidos às lojas, mas consegue um ótimo efeito ao colocar na tela a jornada da cana, de seu estado natural, até a sua transformação em bela peça de roupa. Um engenhoso resultado da indústria e da química mostrado passo a passo.

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A Mentira Amorosa

L’amorosa Menzogna, 1949

Criadas na Itália, nos anos 1940, as fotonovelas eram narrativas muito similares aos quadrinhos, com edições em revista (formato grande, a princípio) que contavam uma história, mas em vez de desenhos, as imagens que acompanhavam as narrações e os balões eram fotografias. Neste documentário, Antonioni companha a produção de uma edição. A princípio, vemos os modelos (um ator e uma atriz) em seus dias normais. Ele é mecânico e ela, ao que parece, dona de casa. Mas o fato de serem bonitos fez com que fossem contratados para vestirem roupas luxuosas e posarem para fotografias que ilustrariam histórias de paixão, vingança, heranças milionárias e amor. Intimista, o diretor guia a narrativa bem próximo dos modelos, desglamourizando a visão que as pessoas têm deles (na verde, o ator é quem recebe maior destaque em tudo aqui) e mostrando atos comuns de seus cotidianos, o trabalho “de verdade” que possuem e o contraste com a febre que as muitas leitoras tem em relação a essas revistas.

A parte final do curta não se resolve muito bem, mas é interessante vermos a produção de um fenômeno cultural como as fotonovelas em seu país e década de origem, mesmo que de forma tão rápida e em micro escala. Para quem gosta da temática desse “mundo dos sonhos” versus o “mundo real” de modelos desta forma de arte, indico que veja o longa Abismo de um Sonho, de Federico Fellini, do qual Antonioni foi co-roteirista.

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Superstição

Superstizione, 1949

Embora esteja marcado como “documentário”, este curta-metragem de Michelangelo Antonioni está mais para uma “encenação documental” do que qualquer outra coisa. Mas vamos colocar a película em perspectiva. Toda a sua base é verdadeira e temos diante de nós a mesma questão vista no curta Limpeza Urbana, que o diretor realizou um ano antes. O espectador entende a proposta e sabe que todas aquelas ações são características culturais e fazem parte do imaginário popular italiano (mas não só: creio que espectadores de qualquer lugar do mundo poderão fazer associações com as superstições aqui mostradas e as de seus próprios países), e é essa verdade que dá ao longa o seu valor, em vez de subtrair muita coisa dele, como seria, caso a encenação fosse para mostrar algo que não existe. É um tipo diferente de documentar o real.

Algumas superstições aqui são nojentas e não parecem muito saudáveis (como a velha senhora que bebe o xixi de um garotinho bebê) e outras são bastante cruéis, como a mulher que esmaga a cabeça de uma serpente viva e em seguida queima o bicho em uma fogueira próxima para atingir determinado objetivo místico. É muito curioso que o diretor não só mostre elementos básicos de crenças em fontes de sorte ou azar — vide o gato preto que atravessa a tela no início ou o espelho que se quebra na primeira sequência — mas passa por diversas “simpatias” e práticas que conhecemos bem aqui no Brasil. Outro ponto a ser destacado é como a religião católica está amarrada a algumas dessas práticas, desde o ato simples de benzer com ramos de flores para tirar um “mal-olhado” até pequenos rituais para levar o bem e a sorte às pessoas. Mesmo tropeçando na fluidez da narrativa, o diretor consegue aqui um resultado final impressionante.

Curtas de Michelangelo Antonioni (Itália, 1947 – 2004)
Direção: Michelangelo Antonioni
Roteiro: Michelangelo Antonioni
Elenco: Anna Vita, Annie O’Hara, Sergio Raimondi, Sandro Roberti, Gerardo Guerrieri
Duração: 9 a 11 min.

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