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Crítica | Curva do Destino

por César Barzine
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Uma daquelas típicas lanchonetes americanas – em que funcionários com chapéu branco servem donuts e ovos com bacon – é um perfeito cenário para um personagem de Hollywood demonstrar seus problemas ou iniciá-los. Al Roberts faz parte desse primeiro grupo, porém não chega a dizer aquilo que o atordoa. Apenas seu silêncio e sua face deprimida já expressam isso. No entanto, a reação furiosa com que ele destrata um sujeito ao lado afirma que seu problema é de grave proporção – mas isso vai além de uma simples adversidade, sua encruzilhada é dominada por uma contrariedade atemporal e intrínseca à sua existência.

Este momento na lanchonete não é o ponto de partida para a tentativa de resolução dos problemas de Al, e sim a sequência que representa a sua posição de estar à beira do abismo e no fim de sua problemática jornada dentro do filme – já que o conceito da obra é justamente a infinitude de suas quedas. Portanto, logo em seguida, a narrativa retrocede ao seu ponto inicial, que é o exato oposto daquilo que minutos antes nos era apresentado. Agora, a vida de Al está um mar de rosas, banhada de ternura ao lado de sua companheira, que aspira ser atriz em Hollywood. E assim ela vai em busca de seu sonho, mas sem Al, que em breve a procurará na meca do cinema. No entanto quem acaba mesmo vivendo uma vida de cinema é o próprio Al – porém sem glamour e nem final feliz.

Dada a narrativa que é percorrida por um longo flashback, Curva do Destino assume o formato de um relato junto com a narração amargurada de Tom Neal na pele de Al. Suas falas em off abrangem o filme inteiro, pois elas são a camada azeda que antecipa as constantes desgraças prestes a virem e a soma total delas, representando o veredito na vida de Al e a síntese de sua existência. O longa acaba sendo um diário dotado de enorme pessimismo que leva o protagonista a ser tanto um instrumento de relato quanto de desabafo.

Al, um zé ninguém completamente desafortunado, acaba se lançando na estrada a pé em busca de carona. Recebe uma, e daí começa o inferno. Sorte para o passageiro ou um possível momento de azar para o motorista? A resposta é clara pelo que já está escrito neste texto: o andarilho nada tem a ganhar com a carona. Mas um dos pontos fundamentais na onda de infortúnios de Al é a improbabilidade com que surgem os fatos. Abruptos e inesperados, já vemos isso da forma mais clara possível no primeiro ato em que o motorista que oferece a carona morre. A coisa mais fatal e a menos previsível para aquele passageiro aconteceu. E agora ele herda não apenas o fardo de ser inexoravelmente suspeito desta morte, como também o passado do próprio motorista, que funcionará como mais um tormento para ele.

Pode-se dizer que, diante do cinema industrial da Hollywood Clássica, Curva do Destino se encaixa como uma obra do realismo sujo. Há aqui o protagonismo de pessoas das menos favorecidas classes e uma ambientação sem qualquer luxo ou estilo cosmopolita. Porém não para por aí: o verdadeiro realismo e a verdadeira sujeira da obra de Edgar G. Ulmer se encontra no aspecto psicológico, que sequer se constitui em um estudo de comportamento do personagem central, e sim um mosaico de observações das circunstâncias do ambiente sobre ele. O roteiro apresenta a questão psicológica não através da busca enfática de um personagem em estado anormal (o que não significa necessariamente algo patológico), o que ele faz é centralizar um personagem plenamente lúcido e deformar o seu equilíbrio emocional conforme o despertar das reações dele contra o caótico meio em que está inserido. De certa forma, o grande motor da trama nem sequer é Al, mas seu respectivo ambiente, pois ele comanda as cordas da marionete que Al se tornou.

Se o trajeto até Hollywood é o eixo central de Curva do Destino, percebemos que o filme é dividido em duas partes: a primeira, em que Al é o passageiro; e a segunda, em que ele, drasticamente, se torna o motorista. E é justamente este o grande motor de sua tensão: ser motorista de um veículo que não é seu. Isso nos leva a uma outra contradição, que é o simples fato de Al não estar no comando de sua própria direção; seu destino é absurdamente conduzido por uma força arbitrária. Essa desorientação parece ser justamente orientada por uma lógica inversa em que tudo deve, em termos racionais e utilitários, caminhar por uma via contrária.

Tal via atinge mais um ponto de parada (ou queda?) – em que, novamente, há a carona e a passagem para o inferno – quando Al abre as portas de “seu” carro para uma nada típica femme fatale. De início, a postura dela se mantém morta – não fala e nem expressa nada. Tamanha inércia é inquietante ao público, até que ela, numa manifestação de fúria e cinismo, se revela. Ou melhor, revela o próprio Al – Vera, a dama fatal, conhece as particularidades tanto do autêntico motorista daquele carro quanto de Al, e assim surge mais uma curva no caminho dele.

Em um aspecto cênico, é uma pena que um momento tão sedutor em seu lado obscuro e misterioso seja parcialmente estragado pela péssima atuação de Ann Savage. A atriz não consegue dosar sua eloquência de uma pessoa em condição ébria e zonza, tendo uma voz bem feia e a dicção de um jeito engessado e firme demais. A verborragia que solta contra Al chega a ser tosca, mesmo ela o intimidando sem parar, para o público esse confrontamento fica parecendo mais uma caricatura.

Poucos minutos depois, na medida em que Vera e Al já formaram um laço mais sólido, a interpretação de Savage abandona de vez as afeições cartunescas. Sua personagem passa para um estado mais humano, a sobriedade dela atinge a reflexão estimulando Al a questionar a sua condição ao alegar que a situação dele nem é tão ruim. Esse otimismo acaba sendo apenas um meio dela seduzi-lo. Ele não cede a seus pensamentos, levando-a a frustração, que é banalmente demonstrada no ato de cobrir parte de seu corpo com um robe, sinalizando também seu endurecimento. Desta forma, Vera se demonstra como uma personagem multifacetada, que vai de uma mulher desnorteada, sinistra e rigorosa para alguém que nada mais é do que carente, almejando seu lugar ao sol.

A tal femme fatale é simplesmente uma mulher sem rumo – o que é apontado de forma explícita na fala em que Vera diz para Al que para onde ele for está bom para ela. Ambos perpassam um longo caminho áspero, sobrando a eles, vítimas de um destino sádico, nada além da tragédia. Curva do Destino é um conto fatalista seco e de inevitável teor existencialista – o absurdo, a repetição e a morte on the road, evocando a vida e o pensamento de Albert Camus, onde só é possível aquilo que é improvável. A narrativa desenrola-se de modo enxuto em uma trama que não têm barrigas, absolutamente todas as cenas, em seus curtos 67 minutos de metragem, acrescentam algo neste filme formado pela imutável repetição de curvas e capotes da vida.

Curva do Destino (Detour) EUA, 1945
Direção: Edgar G. Ulmer
Roteiro: Martin Goldsmith (argumento e roteiro), Martin Mooney
Elenco: Tom Neal, Al Roberts, Ann Savage, Claudia Drake, Edmund, MacDonald, Tim Ryan, Esther Howard, Pat Gleason
Duração: 67 minutos.

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