- Há spoilers somente das temporadas anteriores. Leiam, aqui, as críticas das demais temporadas.
Há tanta coisa boa para falar da terceira temporada de Dark Winds que eu nem sei por onde começar. Na verdade, sei sim, pois como resistir às pontas não creditadas de Robert Redford e George R.R. Martin, produtores da série, como dois detentos nas celas da delegacia comandada pelo tenente Joe Leaphorn (Zahn McClarnon) que jogam xadrez logo no começo do primeiro episódio? Não só é a última aparição de Redford diante das câmeras, como ver Martin empregando seu tempo com essas participações no lugar de escrever os livros que ele têm que escrever chega a ser engraçado, ainda que não, provavelmente, para quem anseia pelo final das Crônicas de Gelo e Fogo. Mas, falando sério, a mais recente temporada da série e a primeira a ser baseada não em um, mas em dois livros da série literária Leaphorn & Chee, do autor americano Tony Hillerman, é um primor audiovisual que parece pegar o que de melhor as duas primeiras tiveram para construir uma história – ou duas histórias paralelas com pouquíssimo tangenciamento, mas eu chego lá – que tem como objetivo quase exclusivo lidar com as consequências do que Leaphorn fez com B.J. Vines no final da temporada anterior, com direito até mesmo a mais dois episódios para permitir que tudo seja abordado com toda a calma que merece.
Em termos de estrutura, a terceira temporada repete a estratégia de começar em um ponto no presente repleto de ação, somente para então retornar alguns dias no tempo e contar a história toda até chegar a esse ponto e continuar a partir dele. Em termos de conteúdo, o novo ano volta a investir de maneira mais pesada no lado místico da mitologia Navajo, como na primeira temporada, construindo uma irresistível atmosfera lynchiana, além de lidar com dois casos aparentemente sem conexão. A primeira tomada abre com um travelling noturno rente ao chão ao som de Space Oddity, de David Bowie, com Leaphorn caído no deserto e iluminado apenas pelo facho de sua lanterna e com um dardo aparentemente envenenado cravado em seu pescoço. A música para no momento em que ele acorda, fazendo esforço para falar em seu rádio para pedir ajuda e para se levantar, mas mal conseguindo andar, com as sequências escuras mostrando uma ameaça aparentemente fantasmagórica que cerca e assusta o policial que é pontuada por um trilha sonora que poderia muito facilmente ser de filme de terror. Quando o prólogo acaba e a história é “rebobinada” para sete dias antes, vemos Leaphorn acordando em sua casa ao lado de sua esposa Emma (Deanna Allison) para um novo dia de trabalho e, não demora, ele e Jim Chee (Kiowa Gordon) se encontram com o xerife Gordo (A Martinez), ainda não exatamente aposentado como ele prometera, em uma potencial cena de crime em que um adolescente de 14 anos está desaparecido, com outro, que passara a noite com ele, detido na escola até fugir.
Na fronteira dos EUA e México, vemos Bernadette Manuelito (Jessica Matten), em seu novo emprego, localizando, durante uma ronda, um furgão branco que a leva a uma mãe e uma filha mexicanas aparentemente tentando entrar ilegalmente no país. É uma sequência propositalmente confusa, que não dá tempo ao espectador para entender exatamente o que está acontecendo, somente para notar que há algo de errado ali e que Manuelito percebe isso imediatamente, deixando com que seus instintos, a partir desse ponto, a leve em um caminho inevitável e solitário de confronto com Tom Spenser (Bruce Greenwood), um magnata local que parece ter toda a força policial fronteiriça em seu bolso, além de Budge Baca (Raoul Max Trujillo), um particularmente assustador assassino, em sua folha de pagamento. Apesar de ser natural esperar que casos tão díspares em séries policiais acabem convergindo, aqui Graham Roland assume o risco de manter as narrativas quase que completamente separadas, permitindo-se apenas algumas breves convergências que servem para criar dúvidas tanto para a trinca investigativa quanto para o espectador, que fica sem saber exatamente como conectar as duas pontas. É uma escolha arriscada, mas muito bem executada, que não deixa buracos e permite que as histórias sejam mantidas com seu vigor todo o tempo, sem tramas rocambolescas somente para amarrar uma coisa à outra, o que também ajuda a abrir espaço para o elenco principal dar seu melhor, ainda que, mais uma vez, a presença do personagem de Kiowa Gordon seja a menos interessante.
Como nas temporadas anteriores, os casos policiais são menos importantes do que o desenvolvimento dos personagens e, nesse aspecto, a terceira temporada é uma aula magna sobre culpa, responsabilidade e expiação de pecados que usa a localização do corpo de B.J. Vines seis meses depois de sua morte no deserto e a presença de Sylvia Washington (Jenna Elfman, a June de Fear the Walking Dead), uma esperta e insistente agente do FBI, na delegacia, para colocar Leaphorn contra a parede, precisando olhar para dentro de si mesmo e compreender o que fez e, claro, lidar com as consequências de sua escolha, especialmente no que diz respeito à sua esposa que, não demora, desconfia do que o marido fez e não contou para ela. Esse é o ponto nodal da temporada, sua verdadeira razão de existir, diria, algo raro especialmente em séries americanas, com Dark Winds aproximando-se mais das séries britânicas tanto em duração como na forma como vai a fundo em seus personagens problemáticos. Quando o retorno ao ponto em que a série começa acontece no sexto episódio, ele se dá por meio de uma longa e espetacularmente fotografada sequência onírica executada com delicadeza que retorna ao passado longínquo de Leaphorn para deixá-lo revirar sua vida quando tinha apenas 12 anos e sua relação com os pais e com a Igreja Católica, com direito até mesmo a uma participação especial de Robert Knepper (talvez mais lembrado como o T-Bag, de Prison Break) como um padre que marcou sua infância.
Se Zahn McClarnon já vinha sendo o insofismável centro das atenções dramáticas de Dark Winds desde o primeiro minuto do primeiro episódio da primeira temporada, aqui ele, talvez, chegue em seu auge. Seu rosto não só carrega a dor ancestral do povo Navajo de seu personagem, como a profunda tristeza que Leaphorn suporta nos ombros pela morte de seu filho em uma explosão em uma mina que, na segunda temporada, ele descobre ter sido um assassinato. Some-se a isso a angústia – com pitadas de arrependimento – que o policial sente por ter deixado B.J. Vines morrer no deserto como “justiça indígena” e, mais ainda, por ter que esconder isso de sua esposa, que ele ama profundamente. McClarnon parece habitar seu personagem de tal maneira que tudo é natural e imediatamente relacionável, com os roteiros esmerando-se em entregar ao ator um papel complexo e fascinante que, sozinho, já seria muito mais do que o suficiente para justificar a existência da série.
Com uma quarta temporada já em produção, Dark Winds parece não demonstrar sinais de cansaço. Muito ao contrário, sua qualidade altíssima só cresce ano a ano e a AMC parece ciente do que tem em mãos. Espero, porém, que a perda de Robert Redford em setembro de 2025 não afete o futuro da série, pois, mesmo não sendo o maior apreciador de obras que se eternizam por elas fatalmente acabarem se autossabotando, ainda vejo que há muito espaço para a contínua abordagem dos reflexos de um melancólico pedaço da expansão dos homens brancos na América do Norte. Que os ventos sombrios continuem soprando com o mesmo vigor!
Dark Winds – 3ª Temporada (EUA, de 09 de março a 27 de abril de 2025)
Data de exibição no Brasil: 1º de dezembro de 2025
Criação: Graham Roland (com base em série literária de Tony Hillerman)
Showrunner: John Wirth
Direção: Chris Eyre, Michael Nankin, Billy Luther, Erica Tremblay, Steven Paul Judd
Roteiro: John Wirth, Steven Paul Judd, Rhiana Yazzie, Max Hurwitz, Billy Luther, Thomas Brady, Erica Tremblay
Elenco: Zahn McClarnon, Kiowa Gordon, Jessica Matten, Deanna Allison, A Martinez, DezBaa’, Jeri Ryan, Andersen Kee, Wade Adakai, Tonantzin Carmelo, Alex Meraz, Terry Serpico, Jenna Elfman, Derek Hinkey, Bodhi Okuma Linton, Bruce Greenwood, Raoul Max Trujillo, Christopher Heyerdahl, Carly Roland, Phil Burke, Casimere Jollette, Melissa Chambers, Robert Knepper, Joseph Runningfox, Sarah Luther, Robert Redford, George R.R. Martin
Duração: 366 min. (oito episódios)
