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Crítica | Death Note (2017)

por Gabriel Zupiroli
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Quando Death Note foi lançado, em 2017, a recepção foi muito mais do que meramente negativa. Até onde minha memória consegue ir, público e crítica acabaram com qualquer possibilidade da produção original da Netflix se alçar como uma boa adaptação – ou mesmo um bom filme. Entretanto, após alguns meses, as visões começaram a mudar. Passaram a surgir diferentes comentários elogiando o filme como uma obra autoconsciente de suas próprias limitações, que sabe jogar com o que lhe é proposto. Quase quatro anos após o lançamento, não é muito difícil compreender o motivo da mudança de perspectivas. Basta simplesmente assistir à obra – ou reassistir, em alguns casos – para entender a magnitude da ideia de Adam Wingard e sua grandeza. Death Note é um exemplo de como se adaptar um material original da melhor maneira possível.

Isso porque, como já citei anteriormente, no texto sobre O Som e a Fúria, de James Franco, uma adaptação não deve necessariamente ser fiel à obra original. Não deve nada. No entanto, comparações são inevitáveis, seja para elogiar a fidelidade na transmissão de ideias, seja para engrandecer a inventividade ou capacidade de subversão. Tratando-se de uma adaptação ocidental de uma série de animação japonesa, Death Note carrega em si o espectro do problema desde o princípio. E é com isso que seu diretor sabe lidar. Wingard observa justamente a inserção do filme neste contexto e decide ridicularizar seus próprios princípios. Não é mais uma adaptação, mas sim uma obra que, devido à sua inventividade, desprende-se do material original para adquirir uma identidade própria de peso e muito bem trabalhada.

E é possível observar esta dinâmica em diversos elementos. Para começar, Wingard trabalha com a ridicularização de um imaginário juvenil desde o primeiro minuto. Na caracterização dos personagens, acerta em cheio. Desenha um Light (personagem principal) que encarna em si todos os estereótipos de aluno brilhante e deslocado, porém sensível a todos estímulos que produzem reações cômicas genuínas. Mia (par romântico), interpretada brilhantemente por Margaret Qualley, encarna a figura popular, líder de torcida – sim, meus amigos, líder de torcida, mais genérico impossível -, entediada com sua situação e cuja personalidade beira, às vezes, o sadismo. A princípio parecendo adentrar seriamente nos estereótipos, o filme subverte sua própria condição ao trazê-los para o terreno da comédia assumida. Fechando o trio principal, L (o detetive) adota todos os trejeitos do detetive louco e genial, encarnando inclusive o comportamento físico de um personagem claramente saído de um anime quando se senta de cócoras sobre a cadeira. Wingard tem consciência de seus atos e reproduzir fielmente estas questões só aumenta a dimensão da autoconsciência de sua própria condição.

Toda a narrativa se utiliza de um esquema detetivesco muito estabelecido, misturando-a com elementos de desabrochar da juventude sob um escopo vilanesco – algo que remete, em certo sentido, a Donnie Darko, porém sem a seriedade. A descoberta do caderno que cai do céu, as cenas de transição que adentram de maneira tosca o relacionamento entre Light e Mia, a criação de Kira – Deus, a criação de Kira. Wingard abusa dos dutch angle para remeter a uma estética quase oitentista que beira um certo nicho de ficção científica muito específico, e que poderia claramente soar datado, ridículo, sem criatividade, mas que justamente se destaca como uma possibilidade de referenciar seus próprios alicerces. Death Note se desprende, no plano formal, de qualquer possibilidade de remeter a uma conexão original ao implicar em sua estrutura a base sólida de uma comédia de princípios. Princípios no sentido de admitir sua elaboração e a elevar tanto ao lugar-comum que ela se personaliza. Desprende-se para criar.

Seguindo na linha da autoconsciência, há diversas outras referências que extrapolam a própria obra – e por isso mesmo potencializam seu interior – no âmbito jocoso, como o adesivo “NORMAL PEOPLE SCARE ME” colado ao lado de dentro de um armário estudantil estadunidense, com direito a uma extensão além do comum do plano para seu detalhe. Se isso não evidencia a própria piada, o próprio escárnio de um filme sobre si mesmo, sinceramente acredito que não há nada que possa ir além. Seja na música – que, comentário à parte, é digna de nota por uma duplicidade muito inteligente: o cafona em momentos de evidência e o sintético extremamente bem trabalhado na hora em que a câmera diz por si só -, seja nos desenrolares ridículos propostos pelo filme, tudo aparece de maneira gritante perante o espectador. É como se, a todo momento, uma legenda oculta pairasse escrito: “Sim, somos uma adaptação ocidental de uma animação japonesa que, justamente por sua condição contraditória, não se leva a sério. Algum problema?”

There are so many fucking rules”, repete algumas vezes Light para si mesmo. Há muitas regras malditas, evidencia o filme a todo momento. Adam Wingard, consciente de sua condição enquanto produto fadado ao fracasso desde o princípio, elabora uma narrativa em moldes tão estabelecidos que poderia ir tudo pelos ares caso o filme se levasse a sério. Mas justamente, há tantas regras, há tantas expectativas que nada mais importa. Dane-se tudo, diz a produção. Enveredemos por uma americanização pastelão, coloquemos o herói como um covarde, o caderno como um objeto quase inútil e façamos com que hajam plot twists extremamente malucos e ridicularizados. Há tanta autoconsciência que chega até a ser demais. Em seu meio, tudo se torna um pouco cansativo, como se houvesse a necessidade de explicar a piada para aqueles que não entenderam. Bem, como se mostrou no início, muitos não entenderam mesmo. Mas essa é a graça da coisa. Death Note adapta o material fonte tendo força suficiente para ser uma criação totalmente original, criativa e poderosa. Uma das comédias mais interessantes da década passada.

Death Note — EUA, 2017
Direção: 
Adam Wingard
Roteiro: Charley Parlapanides, Vlas Parlapanides, Jeremy Slater (baseado no mangá de Tsugumi Ohba e Takeshi Obata)
Elenco: Nat Wolff, Margaret Qualley, Willem Dafoe, Lakeith Stanfield, Shea Whigham, Jason Liles, Paul Nakauchi, Masi Oka
Duração: 101 min.

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