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Crítica | Decálogo 5 – Não Matarás (versão de TV e de cinema)

por Luiz Santiago
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A lei é uma ideia do homem para regular suas relações pessoais. Somos o que somos como resultado das leis que obedecemos ou infringimos. O homem é livre. Sua liberdade está restrita pelo direito à liberdade do próximo. E a punição… a punição é uma vingança. Principalmente pretende prejudicar o criminoso ao invés de prevenir o crime. Mas em nome de quem a lei se vinga? É realmente em nome do inocente? E quem faz as leis é realmente inocente?

Introdução, Decálogo 5

O Decálogo 5 é o único que expõe de forma literal uma posição política de Kieslowski: a sua contrariedade em relação à pena de morte. O longa-metragem Não Matarás, lançado antes da série, veio no mesmo em um período em que a pena de morte era discutida e polemizada na Polônia, e tanto o filme quanto o Decálogo exploram a complexidade dessa questão entrelaçando o tema bíblico em pauta (a santidade da vida) ao tema de Kieslowski (crime e castigo).

O filme Não Matarás teve origem na produção do Decálogo. Kieslowski tinha intenção em estender para o cinema o material filmado para a TV, então, durante as gravações, fez pelo menos duas tomadas de cada cena, para então escolhê-las na hora da montagem e designar a mídia para a qual cada uma iria. É muito importante que tenhamos isso em mente a fim de não cairmos no erro de análise temática ou e intenções do diretor em relação aos dois produtos e, sim, enxergá-los como complemento dramático um do outro.

Não Matarás (o filme) foi lançado em 1988 e o Decálogo 5 (o episódio e TV) em 1990. O espaço de tempo entre um e outro deve-se ao fator mercadológico da televisão e do término das filmagens para os outros episódios, não à produção posterior do episódio de TV mediante a recepção do filme, como muita gente acredita. A origem de ambos os produtos é exatamente a mesma, eles só foram diferenciados durante a montagem e os efeitos da pós-produção, onde ganharam identidades estéticas distintas, especialmente em um aspecto: a fotografia.

Assinada por Sławomir Idziak, a direção de fotografia de Não Matarás e do Decálogo 5 é marcada por uma enorme quantidade de filtros, dando uma aparência decadente e sombria de Vasórvia, possivelmente uma forma também política de mostrar o decadente estado do socialismo na Polônia. Considerando este aspecto visual, pede-se que o espectador pense os dois produtos em uma ordem dramática e visual bem específica. No Decálogo 5, a imagem é mais saturada, mais decadente, apodrecida, envelhecida. Filtros que transitam entre verde, laranja, amarelo, sépia, cinza e preto aparecem constantemente na tela, mostrando o desequilíbrio de emoções em jogo. Como temos em pauta a maldade sem sentido, essas alterações de cor — que, no final das contas, se emparelham e se embaralham diante dos nossos olhos, causando uma estranha impressão de monocromatismo — formam, por si só, o aspecto psicológico de Jacek, o jovem e cruel assassino: aleatório, opressivo e angustiante.

Algo muito parecido em termos de imagem é possível observar em outro trabalho de Idziak com Kieslowski, A Dupla Vida de Véronique (1991), onde a exposição cromática aparentemente única constrói todo um padrão emocional para os protagonistas. Tal visão, no entanto, é amainada no longa Não Matarás, que, apesar de ainda trazer alguns filtros e presença ampla de íris, cartelas, espelhos e sombras, foi pensada com pouca saturação de cor. É como se no Decálogo 5 tivéssemos na tela o universo mais íntimo de Jacek e em Não Matarás um universo do nosso ponto de vista, de um ponto externo, um pouco menos perturbador, porém, curiosamente, mais violento — perceba a diferença entre o assassinato cometido no filme e no episódio. Até o início e a conclusão dos dois produtos são diferentes. Kieslowski acertou em cheio ao fazer cada uma das obras ganhar um caráter diferente para um mesmo tema, completando-se, no final das contas, e se adequando a cada mídia para a qual foi pensada.

O mesmo podemos dizer da montagem e da direção, que adotam ritmos diferentes em cada produto. A constante, portanto, é a temática, a visão, como já dito, da santidade da vida versus o atentado conta a vida, que o diretor ironiza ao final em dois aspectos, quando o Estado, repressor do assassinato, acaba ele mesmo repetindo o ato, só que com a aura de punição ao primeiro crime. A inquietante ideia de que o Estado pode salvar e tirar vidas é exposta e ganha contornos até exagerados no final do Decálogo 5, algo que não acontece em Não Matarás.

É curioso observarmos que o o “anjo” aparece duas vezes aqui, a primeira como um trabalhador de construção civil segurando uma régua de medição de terreno pouco antes de Jacek cometer o crime; e outra, quando o advogado de Jacek encaminha-se para conversar com ele antes da execução. A ausência divina parece total. A questão é que ela está afogada pela maldade gratuita que aparece tanto no filme quanto no episódio. É como se cada homem, mulher, jovem e criança estivessem acostumados em, alguma medida, cometer algum tipo de maldade e algum tipo de morte (o episódio destaca a morte física, o atentado contra a vida, mas esta não é a única forma de morte abordada), afastando qualquer possibilidade de arrependimento, já que a punição está o tempo todo em cena, como tentativa de criar exemplos para que mais maldade e mais mortes não seja cometidas.

A frase de Marx citada pelo advogado no começo do filme e do episódio, talvez reúna a visão completa de Kieslowski não só para a máquina judiciária polonesa (e, por tabela, mundial) mas também para todo o padrão bíblico, com destaque para o Antigo Testamento, de punição divina. A frase é a seguinte: “ademais disso, há algo como estatística, há a História, e ambas demonstram categórica e inteiramente que o mundo, desde Caim, não melhorou e nem foi intimidado por meio de punições“.

A visão do diretor certamente traz consigo outros postulados filosóficos como os de Hegel, Kant ou Foucault (com o clássico Vigiar e Punir) e respeito do mesmo tema, fazendo alusões aos pactos de Deus com o homem a cada renascer vindo de punições em massa que a Bíblia nos apresenta, como o Dilúvio, Sodoma e Gomorra, o Mar Vermelho, os profetas de Baal, os Midianitas, e todas as muitas outras punições/vingança de Deus (direta ou indireta) aos princípios de sua lei ou aos “inimigos do povo de Israel”, que, curiosamente, mesmo sendo tão falho e tão corrupto quanto outros povos, permaneceu vivo, o que destaca ainda mais a ironia exposta por Kieslowski ao tratar a questão da justiça divina e a justiça humana em suas múltiplas instâncias, uma análise tão densa que é uma verdadeira porta de entrada para os mais diversos pontos de vista sobre o tema.

  1. Decálogo 5: Não Matarás (Dekalog, piec) – Polônia, 1990
  2. Não Matarás (Krótki film o zabijaniu) – Polônia, 1988

Direção: Krzysztof Kieslowski
Roteiro: Krzysztof Piesiewicz, Krzysztof Kieslowski
Elenco: Miroslaw Baka, Krzysztof Globisz, Jan Tesarz, Zbigniew Zapasiewicz, Barbara Dziekan, Artur Barcis, Aleksander Bednarz, Zbigniew Borek, Zdzislaw Tobiasz, Krystyna Janda
Duração: 55 min. (episódio) e 80 min. (filme)

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