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Crítica | Decálogo 6 – Não Cometerás Adultério (Filme: Não Amarás)

por Luiz Santiago
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Assim como o longa Não Matarás, Não Amarás (1988) surgiu como uma “segunda visão” para um dos capítulos da série Decálogo, de Krzysztof Kieslowski. O episódio-base para o filme foi o Decálogo 6: Não Cometerás Adultério (1990), e a história central de ambas as fitas mostra a relação entre um jovem voyeur, Tomek, e sua vizinha Magda, a quem ele observa todos os dias e cujo destino se ligará ao do rapaz de uma maneira bastante triste.

A forma como os longas se diferenciam do episódio no qual foram baseados e as resoluções do diretor para os dois produtos servem como complemento entre si, muito embora isso seja melhor visto na relação entre Não Matarás e o Decálogo 5. Em Não Amarás, a realidade é bem mais parecida com a do episódio. As modificações fotográficas são poucas, o tom é mais sombrio e o desfecho muda bastante. No entanto, observamos características fortes que servem de identidade para as produções e fazem com que se encaixem, mesmo em suas diferenças, dentro de um mesmo cenário de isolamento, tristeza e desejo reprimido.

O mandamento bíblico ganha aqui nuances da psicanálise e cinefilia onde a realização de um desejo impossível é dado indiretamente pelo roubo (Tomek rouba uma luneta para observar Magda, rouba suas cartas e, simbolicamente, rouba a privacidade e liberdade da mulher) e pela mudança das características do personagem slasher que, nas palavras de Slavoj Zizek, no ensaio A Teologia Materialista de Krzysztof Kieslowski,

[…] trata-se de uma espécie de slasher introvertido, em que o homem, em vez de agredir a mulher, volta sua raiva assassina contra si próprio.

De uma forma curiosa, o sexo e o desejo em Não Amarás e Não Cometerás Adultério estão intimamente ligados à punição divina mais extrema vista em muitos casos bíblicos: a morte aos que se deixarem tomar pelo apetite sexual. Essa morte, no entanto, aparece aqui infringindo de certo modo o mandamento do Decálogo 5, com quem guarda muitas semelhanças na estrutura de abordagem cristã — à exceção de que aqui a frase deveria ser, como bem lembra Zizek, não matarás a ti mesmo. Até a figura angelical aparece duas vezes e em momentos estratégicos (uma como aviso e outra como uma quase-acusação), a exemplo da obra anterior. Para completar, a função moral se coloca com bastante peso na relação entre os dois protagonistas, que mudam a maneira de enxergar o mundo à medida que atentam para o que realmente se passa ao redor deles. É através da experiência, independente do que a tenha causado, que os valores das coisas e a relativização do cotidiano surgem para Tomek e Magda, assim como para todos nós.

A citação visual de Janela Indiscreta (1954) nos coloca a princípio em um cenário familiar, mas o que teremos no desenvolvimento das obras não é nada parecido com a abordagem hitchcockiana. O sentido é outro, o impulso é outro e o tratamento estético dado tanto pelos diretores quanto pelos fotógrafos e compositores se opõem grandemente. Esta manipulação do cenário familiar e seu conteúdo estético também é vista na versão de amor que temos em tela — o filme e o episódio acabaram sendo considerados por muitos como uma história de amor, embora trágica, mas não foi isso que Kieslowski filmou — e este caminho interpretativo dá um novo tom à forma como o espectador irá atrelar mandamento divino, punição ao pecado, moral, amor, sublimação de desejo e abandono. O fato de termos dois finais para uma mesma história torna esse exercício ainda mais instigante e rico.

Acima de qualquer coisa, Não Amarás e Não Cometerás Adultério carregam as maiores características da filmografia de Kieslowski. Há aqui as sementes do que seriam A Dupla Vida de Véronique (1991) e A Fraternidade é Vermelha (1994), com personagens cercados por um tormento que emana deles mesmos e que é aplicado simbolicamente a alguma coisa na linha narrativa da história. Aqui, este elemento físico é personificado pelo leite, presente não apenas nessas duas histórias mas na maioria dos episódios do Decálogo. Observar o tratamento dado a este ingrediente específico é como ver a dor dos personagens alimentada diariamente pelo líquido (distribuído, bebido ou derramado) e justamente por este líquido ligada a uma possibilidade de vida digna que a punição divina os impede de ter, pois vivem em pecado, um pecado constante, humano e incurável, pois se trata de desejo sexual. Raras vezes, no cinema ou na TV, a libido foi tão estratégica e belissimamente massacrada.

  1. Decálogo 6: Não Cometerás Adultério (Dekalog, szesc) – Polônia, 1990
  2. Não Amarás (Krótki film o milosci) – Polônia, 1988

Direção: Krzysztof Kieslowski
Roteiro: Krzysztof Piesiewicz, Krzysztof Kieslowski
Elenco: Grazyna Szapolowska, Olaf Lubaszenko, Stefania Iwinska, Piotr Machalica, Artur Barcis, Stanislaw Gawlik, Tomasz Gradowski, Rafal Imbro, Jan Piechocinski
Duração: 58 min. (episódio) e 86 min. (filme)

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