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Crítica | Delírio de Loucura

Nicholas Ray em mais um retrato de um homem degradante.

por César Barzine
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Somente Nicholas Ray poderia realizar um filme como Delírio de Loucura, pois somente Ray é capaz de criar pesadelos com tamanha  dose de lirismo. Nick Ray é o poeta das ruas, do frio que sonda a calada da noite e dos atritos que atormentam o homem. Seus filmes são ensaios sobre algum sujeito numa posição marginal; seja o adolescente rebelde em Juventude Transviada, o detetive melancólico em Cinzas Que Queimam, ou o ator depreciativo de No Silêncio da Noite. Delírio de Loucura, obra que conserva a sua costumeira fúria existencial, transgride todos esses demais trabalhos pois, ao passo que tais produções partem de uma obscuridade intrínseca – rebeldia, solidão e submundo do crime -, o longa em questão segue um caminho totalmente oposto, partindo da composição de uma família que tinha quase tudo para evocar o padrão de típica família americana.

Mas o argumento do roteiro apresenta justamente a desarmonização desse núcleo, não através de estímulos externos ou de um comportamento voluntário, e sim colocando em pauta a saúde física e mental do protagonista Ed. Este, um simpático professor primário que sofre de desmaios e espasmos. Durante o tratamento, de  diagnóstico raro, ele passa a fazer uso de um forte remédio experimental que, em seguida e por conta própria, passa a ser consumido em altas doses. O resultado torna a narrativa um estudo de personagem em que Ed assume uma tendência bipolar, tornando-se excêntrico e agressivo. O filme vira uma bola de neve ao desenvolver o monstro psicótico que Ed tornou-se, se assemelhando a outro trabalho dos anos 1950, o mexicano O Alucinado. Nele, um homem extremamente ciumento corrói seu relacionamento amoroso ao ponto de tornar sua companheira vulnerável a um grande perigo – e é exatamente isso que ocorre em Delírio de Loucura.

Mas até tudo isso começar, ronda os olhos do espectador o retrato ameno de uma família que beira a perfeição. Ed possui a profissão mais amigável do mundo, que é a de professor numa turma do Ensino Fundamental I; é um pai participativo que brinca com seu filho; e sua tamanha dedicação familiar o leva a ser alvo de ciúmes de sua esposa quando ela pensa que ele está tendo um outro romance enquanto apenas busca uma renda complementar trabalhando como taxista. Um momento que serve para contrastar esse seu lado afetivo com a toxicidade que estava prestes a virar é quando ele leva a sua esposa para comprar vestidos numa loja cara, marcando terreno do seu estado de lucidez antes de desabar aquela instituição familiar que parece ter-se mantido como um castelo de areia.

O roteiro demonstra certa ousadia com crises de saúde e a convulsão pessoal que é causada no ambiente familiar, impondo uma temática coesa com o restante da filmografia de Ray ao mostrar o processo de degradação que se estabelece entre o indivíduo e seu meio. Com o alto índice de diagnósticos de transtornos mentais e prescrição de medicamentos antipsicóticos e antidepressivos, Delírio de Loucura se mostra bastante sintomático aos dias de hoje ao mostrar de maneira catártica que o tratamento médico – no caso, aqui, o autotratamento – pode ser ainda mais danoso que o transtorno inicial. Ed torna-se outra pessoa – ou até mesmo um “ser duplo” -, e passa a ver tudo e todos de forma fria e materialista, como se um psicopata tivesse encarnado dentro de si.

Ele passa a encarar seu filho como um projeto em construção, um alguém a ser moldado às aspirações paternas que possui. Em seu trabalho na escola ele, audaciosamente, propõe medidas pedagógicas atualmente heterodoxas e rigorosas, pois acredita que a sociedade de hoje cria jovens fracos demais. Tudo para Ed passa a ser pensado de modo técnico e a longo prazo, como se o seu elemento humano tivesse desaparecido e sobrado apenas uma máquina egocêntrica. A soberba e paranoia dele são elevadas a um grau insuportável, humilhando e torturando psicologicamente aqueles que, de alguma forma, não satisfazem o seu gosto.

Algumas pessoas podem ver nessa conduta uma espécie de “despertar do homem médio americano” ou “desconstrução do American Way of Life“, como se tivesse algo de autoritário dentro do espectro de normalidade. Bobagem, Nicholas Ray nunca faz proselitismo social quanto menos psicanálise barata. O diretor se interessa apenas pela superfície das coisas, sua aparência amarga e o drama arrancado dela. Problemas de ordem coletiva são totalmente dispensáveis para a atenção do cineasta. Ray não quer criticar nada, estando mais perto de exaltar a família como instituição; o que é salientado tanto na cena em que Ed briga com sua esposa no banheiro quanto na cena final, que apresenta a busca pelo resgate da união entre eles.

Esta, uma passagem de imensa superação, ainda mais se recordamos do clímax do filme, onde Ed, totalmente desnorteado pela sua personalidade adquirida, cogita a ideia de matar seu próprio filho. O longa, assim, atinge seu pico de tensão, um momento de ousadia do roteiro onde a brutalidade do protagonista deixa o espectador acalorado. Ed recorre a uma referência bíblica para embasar o seu ato: o infanticídio na história de Abraão. Sua esposa, atordoada, tenta repelir o marido ao dizer que Deus impediu Abraão de matar seu filho; Ed responde “Deus estava errado!“. Daí pra frente, Delírio de Loucura incorpora a insanidade em sua própria estética ao flertar com um tom psicodélico; a imagem fica fortemente avermelhada, traços da realidade ótica são distorcidos e uma música infantil começa a tocar.

O som diegético dá um tom de ironia à sequência ao vir acompanhado, além de um aspecto macabro, da também violência que a situação provoca. Mas esta não é a única parte do transtorno de Ed que é exposta pela mise-en-scène: o uso de sombras no corpo do protagonista é bastante habilidoso na cena em que ele ensina matemática ao seu filho – por mais caricato que possa ser comentar a simbologia por trás de uma sombra. É como se ela fosse o retrato de sua segunda pessoa colocada em ação, o momento de autoritarismo em que ele submete seu filho se casa completamente com este simbolismo, pois retrata tanto um aspecto obscuro quanto o reflexo de seu ser – duas características de qualquer sombra.

James Mason, intérprete de Ed, encarna o personagem com devoção, oscilando entre os extremos de homem ideal para um sujeito antissocial.  Já sua esposa, vivida por Barbara Rush, também possui um desempenho admirável ao expor sua fragilidade e tremor diante de tal situação alarmante. Uma pena que o tratamento dado à personagem peque um pouco pelo seu excesso de passividade – embora a principal vítima nessa história seja o próprio Ed.

Delírio de Loucura (Bigger Than Life) – EUA, 1956
Direção: Nicholas Ray
Roteiro: Cyril Hume, Richard Maibaum
Elenco: James Mason, Barbara Rush, Walter Matthau, Robert F. Simon, Christopher Olsen, Roland Winters, Rusty Lane, Rachel Stephens, Grace Hayle
Duração: 95 minutos.

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