Home TVTelefilmes Crítica | Dentro do Labirinto: Os Bastidores de O Silêncio dos Inocentes

Crítica | Dentro do Labirinto: Os Bastidores de O Silêncio dos Inocentes

Um cuidadoso documentário de bastidores para celebrar o clássico moderno.

por Leonardo Campos
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Um dos clássicos modernos mais celebrados, merecidamente, nas últimas décadas, O Silêncio dos Inocentes ganhou uma eficiente crítica genética na época das comemorações em torno de seus 10 anos de lançamento, produções que deflagravam informações de bastidores e detalhamento de processos que tornaram o livro um filme de coeso, intenso e inesquecível. Dentro do Labirinto: Os Bastidores de O Silêncio dos Inocentes é um desses casos, documentário com um mais de uma hora de duração, escrito e dirigido por Jeffrey Schwarz, também editor do projeto, ao lado de Jeff Picket, dupla que integra depoimentos, fotografias, stills de reportagens e trechos de matérias jornalísticas da época, além das imagens de arquivos pessoais e museológicos. Acompanhada pela enigmática e operística trilha sonora de Howard Shore para o filme, a narrativa documental segue os padrões já habituais de materiais de crítica genética cinematográfica. Os planos geralmente são médios, com captação das histórias dos entrevistados em paralelo aos trechos do filme analisado, num panorâmico painel que funciona como uma didática aula de cinema.

Organizado linearmente, acompanhamos a transição do romance para roteiro, os processos de produção prévia ao momento das filmagens, as estruturas de cada setor na busca pelas melhores escolhas estéticas, a recepção inesperada, as polêmicas geradas e o legado deste filme que deu força para Hannibal Lecter e Clarice Sterling se transformarem em partes importantes de uma franquia. Começarei com um detalhe do meio e depois retomarei para a proposta cronológica crescente. Fiquei surpreso em saber que o filme enfrentou fervorosos protestos de grupos homossexuais, questionadores no que diz respeito aos estereótipos fabricados e vendidos cotidianamente por Hollywood. O diretor, os atores, a maioria dos membros da equipe técnica se dizem sensíveis à causa, por isso, não sentiram que o material era degradante para o público que não se sentia representado. Jonathan Demme se envolveu posteriormente com Filadélfia e reconheceu que trechos do filme podem ter sido ofensivos, mas não intencionais. Ele culpa Hollywood e ressalta que se faz necessário repensar tais representações. Na atual cultura do cancelamento, torna-se até curioso o quão a narrativa ainda permanece ilesa. Algo para refletir.

Transformado em clássico do terror sofisticado, O Silêncio dos Inocentes é um filme com alta carga de tensão que nunca se dissipa, permanecendo ao longo de toda a narrativa, tanto nos momentos de auge quanto nas passagens de mais tranquilidade e esforço intelectual dos personagens. Ao mudar os rumos do gênero, a trama nos apresenta uma mulher no comando, diferente dos heróis padronizados pelos filmes de ação da época. Figura forte, mas com seus momentos de fragilidade diante de um cenário tão aterrorizante, Clarice Sterling, interpretada com firmeza por Jodie Foster, é uma espécie de personagem alegórico para a luta contra o Minotauro, monstro que habita uma zona a ser desvendada, num processo de enfrentamento que a transforma depois de vencida a etapa final. Sábia, Sterling sai da experiência mais preparada para as adversidades que a vida lhe coloca, assumindo um papel que a indústria geralmente entregava aos homens.

Sobre esse relacionamento do olhar de uma mulher numa dinâmica machista e opressora, a direção de fotografia de Tak Fujimoto consegue dar conta disso visualmente, num complemento significativo da parte dramática desenvolvida com proeza por Ted Tally, o transformador do romance de Thomas Harris no filme que todos acreditavam ser uma narrativa simplória que passaria eclipsada por outros lançamentos mais chamativos. O ponto de virada disso todos nós já sabemos, não é mesmo? Como é uma instância de legitimação, impossível não lembrarmos que a produção ganhou os cinco troféus mais cobiçados na cerimônia do Oscar de 1991: Melhor Filme, Diretor, Roteiro, Atriz e Ator. Foi um sucesso retumbante de crítica e público. Michelle Pfeiffer, por considerar o personagem violento, não quis se associar e perdeu a oportunidade de ser parte integrante deste projeto que, convenhamos, é mais a cara de Foster, uma atriz mais talentosa. Anthony Hopkins também teve uma virada em sua carreira, no desempenho dramático que tinha tudo para se tornar caricatural, mas aqui, tornou-se um assustador estudo de personagem.

Logo na abertura, a crítica de cinema Amy Taubin comente o cenário dos anos 1980 para a década de 1990, a ascensão constante do interesse mórbido da sociedade por assassinos em série. Somos apresentados ao modo de operação de Ed Gein, Ted Bundy e outros psicopatas que tiveram até museus erguidos com as suas memórias, isto é, objetos pessoais. Taubin comenta que parecia um processo de fabricação da própria tessitura social, tamanha a dimensão do surgimento destes criminosos em vários pontos dos Estados Unidos. Essa germinação de degenerados, representados no cinema em Psicose, O Massacre da Serra Elétrica e tantos outros filmes, aterrorizavam os quatro cantos da nação e davam trabalhos aos agentes do FBI que tiveram na criação do departamento de Ciência Comportamental uma alternativa para melhor compreender esses perfis. Especialistas na área comentam o quão fidedigno O Silêncio dos Inocentes é diante do modo de operação numa investigação, sem deixar de delinear que a concepção de James Gumb, o Buffalo Bill interpretado por Ted Levine, é um tipo raríssimo e aqui, funciona como um pastiche de outros assassinos em série tornado populares pela mídia.

Para o desenvolvimento da ação, a equipe investigou bastante e tomou a decisão de ficar em Pittsburgh, uma área historicamente envolvida com carvão e aço, espaço ideal por causa de sua geografia que inclui muitos rios e montanhas, além do Museu de História Natural e do Museu dos Soldados e Marinheiros, ambientações que funcionavam como o lugar ideal para a proposta narrativa do filme. Os corpos, diferentemente do que muitos pensaram, não foram concebidos por meio da fabricação de bonecos. Cada cadáver em cena era com base nas fotografias de atrizes maquiadas por Carl Fullterton e Neal Martz, supervisores da maquiagem e dos efeitos especiais, equipe que mesclou gel K-Y, gordura e corante vermelho como elementos que integravam a putrefação dos corpos violados pela zombaria psicótica de Buffalo Bill. As mariposas, também diferente do que muitos pensaram, não foram importadas em sua maioria da Ásia, haja vista a quantidade indisponível. Para dar conta, o adestrador de abelhas Ray Mendez foi chamado para supervisionar as criaturas e adaptar as versões locais para o formato visualmente desejando, pintando-as, além da aplicação de próteses para o alcance dos efeitos desejados.

A Orion Pictures, conhecida por apoiar cineastas independentes e projetos financeiramente menores, comprou os direitos do livro de Thomas Harris para Gene Hackman filmar, mas o ator estava diante de questões muito pessoais e desejou ficar de fora do projeto, dando ao cineasta Jonathan Demme, conhecido por filmes simples e nenhum sucesso de bilheteria, a oportunidade de realizar este filme que era uma incógnita e se revelou uma narrativa de estrutura dramática e estética suntuosa, coesa em todos os seus aspectos, sem precisar apelar para cenas de nudez, frases de efeito e momentos de ação com explosões e batidas, algo típico do cinema estadunidense que busca “impressionar”. Envolvente e cuidadoso em seus pormenores, o documentário também expõe os processos que nos levam aos meandros da estética, com depoimentos de Kristi Zea, designer de produção, Collen Atwood, figurinista, Howard Shore, compositor da trilha sonora, dentre outros integrantes deste trabalho apontado por todos como bastante colaborativo, leve em suas dinâmicas internas, num grupo que pretendia, de fato, entregar um ótimo trabalho.

Para a icônica máscara de Lecter, a figurinista Collen Atwood conta que houve uma série de pesquisas, mas quando a versão definitiva se estabeleceu, poucas mudanças foram realizadas. O design de produção, representado por Kristi Zea, conta como a masmorra onde se localiza o canibal foi montada, desde os primeiros esboços ao projeto final com a cela de acrílico que permitiu melhor desempenho dos personagens e do design de som, inicialmente preocupado com a barreira sonora nos diálogos entre Clarice e Hannibal, resolvido com os furos realizados para os momentos em questão. Tak Fujimoto não concede entrevista, mas o seu trabalho é apresentado por outros profissionais que destacam os closes e a maneira como em determinados trechos o prisioneiro Lecter parece dialogar com a plateia, num recurso que complementou o status do filme como narrativa aprimorada em seus requisitos dramáticos e estéticos. Ted Levine, num depoimento humorado, mas criticamente consciente, expõe que um método eficaz foi estar pouco perto de Jodie Foster, tendo em vista potencializar a tensão dos dois nos momentos finais da trama, além de delinear que nunca pensou em interpretar Buffalo Bill como um gay, pois para ele, o personagem era um heterossexual homofóbico fazendo zombaria com os seus crimes.

O desenvolvimento de sua ambientação cênica teve como base o romance de Thomas Harris, conta Zea, ao explicar que o espaço em questão representava os conflitos de sua mente complexa, deturpada e doentia. Sem parecer grande externamente, a casa tinha um mundo interior mais amplo, com o poço onde Bill punhas as suas vítimas para engordar. Para a fuga de Lecter, os realizadores apoiaram os esboços do design de produção que apostou nas referências ao universo plástico de Francis Bacon para compor os crimes hediondos cometidos pelo psicopata antes da sua escapada, antecipada por música clássica, vinho de qualidade, jantar luxuoso e algumas mortes para selar a sua presença macabra no local. Guiados por teorias de Hitchcock, tais como a ideia de mostrar uma bomba para o espectador, mas não aos personagens, nos dando a vantagem de saber mais e por isso, temer pelas vidas fictícias aos nossos olhos, os criadores do romance e do filme O Silêncio dos Inocentes sequer imaginavam a obra-prima que manipulavam na edição, narrativa plenamente homenageada neste ótimo documentário.

O Silêncio dos Inocentes (Inside the Labyrinth: The Making of ‘The Silence of the Lambs, EUA – 2001)
Diretor: Jeffrey Schwarz
Roteiro: Jeffrey Schwarz
Elenco: Jodie Foster, Anthony Hopkins, Ted Levine, Scott Gleen, Anthony Heald, Kasi Lemmons, Frankie Faison, Lawrence A. Bonney, Howard Shore, Collen Atwood, Jonathan Demme
Duração: 73 minutos

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