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Crítica | Desalma – 1ª Temporada

por Leonardo Campos
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Um lugar distante dos grandes centros urbanos, rodeado por uma floresta densa e habitado por moradores que guardam segredos obscuros. Essa é a base para o desenvolvimento de Desalma, série brasileira que se apresenta ao público em 2020 como mais um passo na caminhada de nossa produção cultural no bojo do horror como gênero nacional profícuo. Lançada pelo Globoplay e dividida em 10 episódios, a série criada por Ana Paula Maia retrata os desdobramentos de um crime ocorrido em 1988, ocasião do desaparecimento de Malyna (Anna Melo), jovem de Brígida, uma cidade ficcional fundada por imigrantes ucranianos. Ela é um personagem mais contado que em ação durante as passagens, mas a sua presença, no entanto, é o fio condutor de todas as unidades dramáticas dirigidas por Carlos Manga Jr., Pablo Muller e João Paulo Jabur, responsáveis pelas incursões inicialmente arrastadas, mais frenéticas depois do sexto episódio, mas nunca medianas no quesito estética. Desalma, além de levar o horror nacional para um novo momento, desenvolve a sua história com uma primorosa construção imagética e sonora de seus espaços.

Esse espetáculo visual cria para os espectadores uma atmosfera deslumbrante, com imagens que vão do idílico ao assustador. Até mesmo as cenas sombrias transmitem um tom de beleza inigualável na atual produção audiovisual nacional, um ponto positivo que nos faz deixar de lado o incômodo dos diálogos literários demais, quando não teatrais, uma celeuma de nossa dramaturgia que ainda precisamos trabalhar para os devidos ajustes. Assim, feito essa apresentação preambular que ressalta as qualidades da série, torna-se relevante retratar o seu conteúdo. Vamos nessa? Sigamos: em 1988, mencionado anteriormente, os habitantes da cidade em questão festejavam os ritos de Ivana Kupala, uma celebração pagã ligada aos meandros dos ritos de fertilidade e associada ao calendário cristão anos depois de suas origens. Uma situação trágica, no entanto, bane a festa da região por três décadas. Agora, com o retorno da festividade, uma presença sobrenatural parece mexer com as pessoas envolvidas nos acontecimentos do passado, com mistérios que chegam para assombrar e resgatar o que está abaixo da superfície e obscurecido na memória. O fio condutor desse enredo é a saga de três mulheres:  Haia Lachovicz (Cassia Kis), Ignes Burko (Cláudia Abreu) e Giovana (Maria Ribeiro).

Acompanhamos o luto de Haia, mãe da vítima. Ela é uma mulher observada com temor e distanciamento por muitos da comunidade isolada, fechada em si e cheia de mistérios. Amarga, ela transparece em suas dimensões físicas a dor pela perda de sua filha. O outro feixe de grande importância é o luto da melhor amiga da vítima, Ignes, mãe de Anatoli (João Pedro Andrade), criança atormentada pela tal presença sobrenatural que precisa ser desvendada para que um pouco de paz se estabeleça na vida da família Burko. Nessa pegada de horror folclórico, herança da tradição europeu, mas aqui devidamente apropriado para o contexto brasileiro, o pequeno Anatoli parece o mensageiro ou talvez a própria transmigração de almas atormentadas pelos tais acontecimentos sombrios do passado desta cidade pacata. É um lugar onde as pessoas evitam falar de determinados assuntos e alguns temas são evitados em nome da quietude absoluta. A Ucrânia, berço da bruxaria na história da humanidade, fornece o material necessário para que o ominoso se faça presente na série e nos deixe arrepiados em bons momentos cuidadosamente criados para fazer o espectador suar frio. São poucos, mas suficientes.

O público mais dinâmico e focado na agilidade pode ser afugentado pelos episódios iniciais, demasiadamente lentos e contemplativos, mas caso haja paciência e foco, o desenvolvimento tende a agradar e envolver de uma forma muito satisfatória. Em sua discussão sobre trauma, culpa e dor, Desalma aborda pontos sobre desestruturação familiar e a aspereza de atitudes que voltam constantemente do nosso passado para nos cobrar a dívida no momento presente e em alguns casos, atormentar pessoas por anos a fio, consolidando-se em seus respectivos futuros. As ações de alguns jovens rapazes na festa de 1988 não permitiram que a paz mantivesse o seu curso na cidade que manteve alguns segredos encobertos de maneira conveniente por eras e agora recebe a devida cobrança sobrenatural que não está nem um pouco preocupada com o que acontecerá diante do resgate da festividade que traz de volta o que anteriormente se manteve inquieto, mas silenciado, à espreita, no aguardo da oportunidade ideal para mostrar o seu potencial. É na ação destes jovens do passado que as mulheres do presente enfrentam os seus dilemas. É uma geração trazendo celeumas para outras, a depositar heranças nada desejáveis em vidas que sequer podem ser responsabilizadas por delitos que não sequer conheciam de seus “antepassados recentes”.

Jumpscare? Poucos, mas temos. Design de produção cuidadoso, tanto na instância folk quanto no desenvolvimento dos espaços sofisticados da família Burko, da escola e das igrejas? Também temos. Ainda sobre o desenvolvimento estético em Desalma, Alexander Wurz, design de som badalado no esquema de produção internacional, entrega a sua supervisão para o setor da primeira temporada deste programa que deixou alguns pontos em aberto para o seu segundo ano, provavelmente mais dinâmico, haja vista os conflitos estabelecidos e na fila de espera para resolução. Antes de encerrar a reflexão sobre a série, devo dizer que a polêmica em torno das comparações com algumas produções internacionais é puro recalque de quem sequer teve a capacidade de assistir ao menos um dos episódios para compreender que entre Desalma e Dark há uma distância grandiosa de elementos temáticos que podem até ser colocados num feixe de análise comparada, mas que na verdade retratam esquemas de estabelecimento do horror completamente distintos. Empréstimos, trocas simbólicas e até mesmo homenagens sempre estiveram presentes na história cultural mundial e mesmo que a série criada por Ana Paula Maia tenha traços visuais e atmosfera que nos remeta aos atuais A Bruxa e Midsommar – O Mal Não Espera a Noite, ressonantes entre um ponto e outro dos episódios, Desalma é o que podemos chamar de horror essencialmente brasileiro.

Desalma – 1ª Temporada (Brasil, 2020)
Criador: Ana Paula Maia
Direção: Carlos Manga Jr., Pablo Muller, João Paulo Jabur
Roteiro: Ana Paula Maia
Elenco: Cássia Kis, Cláudia Abreu, Maria Ribeiro, João Pedro Azevedo, Anna Melo,   Juliah Mello, João Pedro Azevedo, Camila Botelho, Nathália Falcão, Giovanni de Lorenzi, Lucas Lentini, Nathália Garcia, Eduardo Borelli, Valentina Ghiorzi, Giovanna Figueiredo, Lucas Soares, Giovanni Gallo
Duração: 10 episódios de 45 minutos

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