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Crítica | Desejo Atroz

por Luiz Santiago
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Em meados da década de 1950, a carreira de Douglas Sirk sofreu uma grande virada. Depois de uma década realizando filmes de médio ou menor impacto para o público (e alguns poucos com essa classificação nos anos seguintes), o diretor encontrou, por volta de 1953, um caminho seguro dentro dos estúdios para criar obras elegantes e de forte crítica à sociedade americana. Após o icônico Sublime Obsessão (1954), poucos foram os filmes que ele realizou sem que tivesse uma boa resposta nas bilheterias ou nas críticas.

O primeiro passo para essa fase se deu com Desejo Atroz (1953), melodrama ambientado em 1910 e que destaca uma personagem complexa e polêmica para a sociedade da época. A imponente Barbara Stanwyck entrega uma ótima interpretação como Naomi Murdoch, uma mulher que decide sair da pequena cidade onde mora com o marido e os filhos para seguir a carreira de atriz em Chicago e tentar evitar que um escândalo de adultério abalasse a honra da família.

Adultério, abandono, traição e questões de caráter, ética e moral sempre foram temas muito caros a Douglas Sirk desde o seu primeiro melodrama. Aqui, o conflito familiar e a força da opinião acusatória de uma cidade inteira ajudam a fortalecer esses temas, criando uma atmosfera realista para a obra e engajando o público em uma torcida não muito bem definida em relação à personagem principal.

A paixão e antiga relação profissional do diretor com o teatro ajudaram-no a criar um sustentáculo cênico múltiplo em Desejo Atroz, não só no estabelecimento de uma entrelinha metalinguística como também na troca imediata de representação no palco e na tela (para nós, dois tablados ficcionais com lugar cativo na realidade, afinal, quem não atua boa parte do tempo?). Usando desse desvio, o diretor manipula as expectativas e problematiza a forma como as personagens se apresentam e se relacionam. O público sabe onde existe mentira, desejo, fingimento e ocultação de sentimentos, por isso o desenvolvimento do filme nos prende deveras: é impossível não tomar partido de um dos personagens ou torcer para que algo aconteça ou não aconteça a um deles.

O roteiro, adaptado do romance de Stopover, de Carol Ryrie Brink, carrega uma estranheza que aprendemos a aceitar no decorrer da história. Inicialmente, é difícil comprarmos a ideia de uma mãe de família que sai em busca de um sonho e em fuga de um escândalo, voltando uma década depois e sendo recebida com pouca animosidade em resposta ao impacto que esse comportamento tinha no início do século XX. Mas o texto se redime aos poucos, colocando nos diálogos elementos que justificam a presença de Naomi na cidade e os prós e contras de sua estadia na casa, atendendo às expectativas da filha mais nova, enfrentando o justificado ciúme da filha mais velha e dando ao filho a figura materna que ele nunca teve.

Hábil construtor de cenários familiares e fortes personagens femininas (chaves do melodrama), Sirk conseguiu, através deles, um ótimo resultado final em Desejo Atroz, guiando sem muitas dificuldades uma história que transita entre o teatro e o cinema, explorando de maneira criativa o trânsito de personagens dentro do quadro – destacando-se mais uma vez o espaço da casa, como em Apaixonados (1949) – e amadurecendo a profundidade de campo.

Nesse âmbito, não posso me furtar o destaque de uma bela cena onde vemos, no canto direto da tela, as sombras de Joyce Murdoch e o noivo projetadas na parede; mais ao fundo, em sentido diagonal (dentro do quadro da porta de entrada da casa), vemos Naomi Murdoch sozinha; e ainda mais ao fundo, também em sentido diagonal (dentro do quadro da janela – perceba a intenção simbólica para cada uma dessas colocações), Henry Murdoch, também sozinho. A cena possui grande importância para a estruturação das personalidades ali retratadas e é um dos muitos exemplos do grande cuidado estético do diretor.

Embora falhe em parte do roteiro, Desejo Atroz é um filme que definitivamente prende o público e, além de tudo, tem o benefício de ser curto (menos de 1h30), resultado de uma elogiável montagem objetiva. Realista, a despeito do esperado final feliz – o que talvez incomode alguns espectadores – a obra foi de grande impulso criativo para Douglas Sirk, que à exceção dos pouco apreciados Herança Sagrada (1954) e Átila, o Rei dos Hunos (1954), dava início à fase mais elogiada de sua carreira, a fase que lhe daria o título de Mestre do Melodrama.

Desejo Atroz (All I Desire) – EUA, 1953
Direção: Douglas Sirk
Roteiro: James Gunn, Robert Blees, Gina Kaus (baseado na obra deCarol Ryrie Brink)
Elenco: Barbara Stanwyck, Richard Carlson, Lyle Bettger, Marcia Henderson, Lori Nelson, Maureen O’Sullivan, Richard Long, Billy Gray, Lotte Stein, Dayton Lummis, Fred Nurney
Duração: 79 min.

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