Home FilmesCríticasCatálogos Crítica | Desejo e Obsessão (2001)

Crítica | Desejo e Obsessão (2001)

Os desejos proibidos de Claire Denis

por Fernando JG
1,1K views

“Look into my eyes, you see trouble every day, it’s on the inside of me”. É sugestivo que a cena de abertura, que enfoca um casal nas sombras, seja invadida por uma trilha sonora que, pelo que narra, se apresenta como uma parte fundamental desta composição cênica. Atuando quase como um comentário a respeito da ideia dramática, a orquestral Tindersticks vai criando uma atmosfera obscura e melancólica em que o sinistro toma corpo através dos lentos movimentos dos violinos que acusam a agonia a que estaremos expostos. Nas sombras, somos colocados de frente com o desconhecido e o que vemos diante da tela são cenas de um apetite prestes a se tornar patologia. Fato é que a abertura encapsula a síntese da proposta fílmica em todos os seus elementos primordiais. 

Difícil falar em Novo Extremismo Francês e horror corporal sem retomar ao nome da cineasta mais essencial deste movimento que renasce no final dos anos de 1990 e início dos anos 2000. Sem querer reduzi-la a uma categoria fixa, visto que ela mesma se distancia desses rótulos, a cultuada e prototípica Claire Denis, recorrentemente lembrada por ter feito o maior filme da década com seu Bom Trabalho, recria o subgênero a partir de uma assinatura manchada por intimismo, psicologismo, sedução, mania e agressividade, numa linha de enredo destrutivo já experimentado por Possessão (Andrzej Zulawski, 1981) e Crash – Estranhos Prazeres (David Cronenberg, 1996). 

A sua radicalidade fílmica consiste não na manifestação gratuita de violência, mas numa dupla movimentação em que ao expor uma espécie de frenesi originário desvela brutalmente as camadas mais escondidas e recalcadas que existem no gênero humano. É como se Denis mostrasse aquilo que naturalmente é escondido por todos nós, explorando, de modo cru (raw), uma gama de sujeitos afetados – de uma maneira doentia – pelos impulsos mais primitivos e irracionais do desejo, concluindo que o polo-complementar do desejo só pode ser a morte. Denis materializa em imagens a teoria freudiana a respeito do princípio do prazer – e é chocante. Neste filme, nada separa o gênero humano das demais espécies de animais. 

Dane-se a Morte, segundo filme de Denis, é muito mais incômodo se comparado a Desejo e Obsessão, a sua mais influente obra inserida no contexto do movimento. O problema de Dane-se a Morte é a sua baixa adesão à universalidade, coisa que é suprida posteriormente. Trouble Every Day, este conto de prazeres obsessivos e pecaminosamente carnais, nos insere num enredo a respeito de um estudo que está sendo elaborado de maneira ilegal sobre a libido, ganhando volume e textura quando nos relata que estes experimentos sobre o cérebro humano deram errado, trazendo à luz doenças mentais ligadas ao sexo e consequentemente ao canibalismo, expondo Shane Brown (Vincent Gallo) e Coré (Béatrice Dalle) como resultados empíricos dessas pesquisas. 

Investigando ao máximo situações de desejo, Claire Denis chega a lugares inimagináveis em seu estudo a respeito da luxúria, de modo que, ao alegorizar situações de barbárie, a cineasta radicaliza o sexo e coloca este Outro devorado como objeto de satisfação máxima de uma vontade insaciável, doentia e patológica. Se a crítica a princípio não era capaz de conferir à película de Denis o status de um grande filme e se aborrecia com seu excesso de sangue, observamos que este clássico universal do cinema de horror cult ganha constantemente reavaliações, afinal de contas, temos aqui um emblema de uma estética da qual inúmeros cineastas se espelham. Deleitamos uma fotografia com imagens geladas – numa mescla casual entre o tom acinzentado e um azul tipicamente zulawskiano – e uma trilha sonora marcante, composta pela banda Tindersticks, que contribuíram em seis filmes da diretora, introduzindo classe, elegância e imersão no enredo proibido da película; me levando a ter a impressão de que todas as vezes em que toca a soundtrack o filme inevitavelmente sobe um patamar. A combinação é perfeita e o que era bom, fica melhor.

O longa é feito para ser imperfeito e aposta numa instabilidade limítrofe em suas alíneas narrativas bem como na movimentação de câmera em determinadas situações. Até por isso, esteticamente, se vale de características da feiura, do grotesco e de elementos repulsivos. A realizadora não precisa encher o seu trabalho, a todo tempo, de imagens desagradáveis, isto é, o filme acontece e ele não vai te explicar o porquê a cena inicial começa com um beijo em meio às sombras ou o porquê o personagem de Vincent Gallo não finaliza o sexo com a sua namorada em plena lua-de-mel, tendo que se aliviar no banheiro enquanto chora e ela grita com voz de piedade ao lado de fora. As subcamadas vão estar lá pedindo uma nova assistida e consequentemente uma reavaliação da obra. Neste sentido, talvez o sofrimento imerecido dos personagens que não conseguem controlar suas pulsões seja o maior horror que Denis possa provocar em sua película, muito embora utilize de densas e magníficas hipérboles na construção de suas cenas canibais. É um misto de terror e prazer. 

Quando olhamos para a trama, somos levados a compreendê-la como narrativa erótica, contudo, esta característica se compreendida por si só é capaz de dotar o filme de algo que ele não é. A diretora trabalha aqui com níveis complexos de hiperssexualidade e antropofagia numa espécie de vampirismo trágico. Os episódios de mania, popularmente caracterizados como crise, são manchados não por hedonismo, prazer e imoralidade, mas por uma sorte de arrependimento, melancolia e sofrimento comoventes, nos fazendo experimentar um prazer culposo. Aí está a genialidade da construção dramática: não é arte pela arte, o roteiro move com uma fábula verossímil a partir de uma realidade possível, amplificada, como deve ser, pelo artifício cinematográfico. A colaboração de Ágnes Godard aqui é inesquecível: o seu close-up nas faces de desespero e luxúria que se colocam diante da câmera dá o tom perfeito daquilo que propõe a trama e aprofunda, ainda mais, a ideia do filme. Este primeiro-plano evidencia um constante martírio em que a satisfação do prazer acompanha imediatamente a dor e o remorso.

Obcecado por ambos os lados do corpo, material e metafísico, dentro e fora, pela dinâmica do desejo e pela sinestesia enquanto um fator capaz de conferir sensorialidade às suas imagens terríveis, Trouble Every Day tem uma cinematografia relevante e atuações que não precisam de muito para serem lembradas, afinal, quem esqueceria da intensa personagem de Béatrice Dalle após seus episódios inauditos de “desrazão“? E quem não perdoaria o anti-herói de Vincent Gallo com sua face de piedade tentando lutar contra sua própria natureza? Incompreendido, os trágicos problemas de todos os dias de Claire Denis é o filme de gênero que cineastas como Gaspar Noé e Julia Ducournau gostariam de ter no currículo e uma manifestação única de genialidade. 

Desejo e Obsessão (Trouble Every Day, Alemanha, França, Japão, 2001)
Direção: Claire Denis
Roteiro: Claire Denis, Jean-Pol Fargeau
Elenco: Vincent Gallo, Tricia Vessey, Beatrice Dalle, Alex Descas, Florence Loiret Caille, Nicolas Duvauchelle
Duração: 101 min. 

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais