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Crítica | Despair – Uma Viagem Para a Luz

por Luiz Santiago
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Desespero, de Vladimir Nabokov, foi publicado inicialmente como uma série no jornal russo Sovremennye Zapiski (Notas Contemporâneas, em tradução livre), em 1934, e como volume, em 1936. Parodiando O Duplo, de Dostoiévski, e trabalhando com referências vindas de outros escritores como Pushkin, Gogol, Turgueniev, Oscar Wilde e Arthur Conan Doyle, Nabokov escreveu uma obra sobre o tédio, a confusão e a estupidez de algumas classes ou pessoas em momentos essenciais de suas vidas e de suas sociedades. Isto bastou para Tom Stoppard se interessar pelo livro, propor a Fassbinder um enredo (este foi o primeiro filme que Fassbinder dirigiu sem que ele tivesse escrito ou co-escrito o roteiro) e realizar um estranho instantâneo da Alemanha entre 1929 e 1933, tema e cenário-base aos quais o diretor voltaria dois anos depois, em Berlin Alexanderplatz.

Com um grande orçamento e um elenco internacional — Dirk Bogarde, Andréa Ferréol –, Fassbinder realizou em Despair – Uma Viagem Para a Luz, o seu primeiro filme em inglês, recebendo por ele a sua segunda e última indicação à Palma de Ouro em Cannes*. Na história, Herman, personagem interpretado de maneira brilhante por Dirk Bogarde, é um russo radicado na Alemanha, que tenta fazer prosperar sua fábrica de chocolates. O personagem tem uma qualidade de vida muitíssimo acima do alemão médio da época, e é casado com Lydia (Andréa Ferréol, outra grandiosa presença no filme), uma caricatura da “mulher estúpida” cuja representação sempre rendeu críticas a Fassbinder.

O roteiro de Tom Stoppard é extremamente inteligente ao aliar características emocionais, políticas, sociais e psicológicas do casal protagonista já no início do drama, dando a possibilidade de construirmos desde cedo uma visão dos personagens; visão esta que vai se “deteriorando” à medida que o tempo avança. Como existem muitos conflitos em jogo — tanto de ordem pessoal quanto de ordem comunitária — vemos um desfilar de necessidades e problemas que rondam o casal e que, de alguma forma, se intensificam à medida que eles  também mudam, tornando-se mais isolados, mentirosos, loucos. Nessa relação, há espaço para todo tipo de patetismo, bizarrice e desejos de diversas origens, o que de alguma forma justifica a insanidade que observamos na reta final do filme e abre espaço para uma fuga pouco “socialmente correta”, que é a possibilidade do suicídio como um caminho válido para a luz. Ou isso, ou entendemos que o estágio final de Herman também pode ser essa viagem, feita através do mergulho em si mesmo, uma versão mais amarga e reprimida de Norma Desmond em Crepúsculo dos Deuses (1950).

Como Fassbinder aproveitou muitíssimo bem a alta quantia em dinheiro investida na produção do filme — a maior quantia já investida em um filme que ele dirigiu –, todos os seus apreciados aspectos visuais que mostram claustrofobia interna e externa (aqui representados pelos os movimentos de câmera em meia-lua e uma grande quantidade de planos inclinados), espelhos, vidros refletindo imagens, luz e sombras estão expostos sob o mais alto cuidado visual, da primeira cena do filme, com a bela alternância de foco em uma simples panorâmica entre a árvore da rua e a janela onde está o casal; até o desfecho sombrio (textual e esteticamente), filmado em contraste do cenário com o interior escuro do hotel, com um Dirk Bogarde personificando ou desejando mais do que qualquer outra coisa, que a sua alucinação de seu duplo fosse verdeira.

Há um quê metafísico na obra que pode não agradar a todo mundo, mas Despair é um filme que raramente fará algum espectador que realmente admira cinema sair inteiramente descontente da sessão. Da camada psíquica, histórica ou comportamental à excelente trilha sonora de Peer Raben (que nos apresenta temas sinfônicos curtos, marchas, sonatas e uma enorme variedade de frases musicais isoladas que elevam o filme a uma maior contemplação), a fotografia expressiva de Michael Ballhaus e a direção inimitável de Fassbinder, o público terá algo para admirar aqui.

Despair é um filme sobre estar à beira do precipício. Fassbinder disse sobre a obra que ele imaginava algo como um “rearranjo de vida […] quando não apenas a mente, mas o corpo percebem que o jogo chegou ao fim“. A tragédia com pitadas de esperança a que o cineasta nos apresenta é um mergulho de fora da sociedade para dentro da alma do homem. Nunca “viajar na luz” foi algo tão tentador, tão contraditoriamente sombrio e angustiante quanto neste filme.

***

* A primeira indicação de Fassbinder à Palma de Ouro foi em 1974, por O Medo Consome a Alma.

Despair – Uma Viagem Para a Luz (Despair) — Alemanha Ocidental, França, 1978
Direção: Rainer Werner Fassbinder
Roteiro: Tom Stoppard (adaptado da obra de Vladimir Nabokov)
Elenco: Dirk Bogarde, Andréa Ferréol, Klaus Löwitsch, Volker Spengler, Armin Meier, Peter Kern, Adrian Hoven, Alexander Allerson, Hark Bohm, Roger Fritz, Gottfried John, Y Sa Lo, Lilo Pempeit, Ingrid Caven
Duração: 119 min.

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