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Crítica | Detroit em Rebelião

por Luiz Santiago
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Depois da imensa repercussão diante do tratamento político e exploração de uma identidade cinematográfica ágil e avassaladora ao retratar temas reais (ou quase) nos filmes Guerra ao Terror (2008) e A Hora Mais Escura (2012), a diretora Kathryn Bigelow se une novamente a Mark Boal para mostrar os motins que ocorreram na cidade de Detroit, Michigan, em julho de 1967.

Para entender melhor os caminhos utilizados aqui é preciso ter algumas informações em mente. Primeiro, que os Estados Unidos ainda estavam lutando na Guerra do Vietnã, tendo alguns soldados já retornado para casa a esta altura do conflito. Segundo, que o ano em que o filme se passa contou com nada menos que 159 motins, em diversas cidades dos Estados Unidos, causados por motivos raciais, um período conhecido como “long hot summer of 1967“. No início do filme, há uma pequena animação explicando a “Grande Migração” de populações negras do sul dos Estados Unidos em direção ao norte (final dos anos 1910), em busca de melhores condições de vida e emprego. Já no final dos anos 1940, as necessidades pós-Segunda Guerra alteraram a organização e mobilidade urbanas, assim como a oferta de empregos, facilitando o aumento dos já existentes e marginalizados “bairros negros do norte”.

Misturando material documental com sua técnica de filmagem na mesma linha, privilegiando a câmera na mão, com raccords no meio de um movimento intenso, normalmente com diversos atores no quadro, Bigelow consegue nos inserir nos motins e, a princípio, se mantém um tanto “distanciada” ideologicamente dos eventos, expondo os fatos e criando alguns ganchos dramáticos que seriam prontamente utilizados nos atos dois e três do filme. Após a apresentação geral, a obra chega ao verdadeiro momento pretendido pela diretora, a noite no Algiers Motel. Se até este ponto as coisas iam mais ou menos plácidas em termos de ritmo e ingredientes políticos e sociais no enredo, com um ou outro momento de enfrentamento ou desconforto no trato dos policiais em relação aos cidadãos e aos crimes de diversas ordens praticados por estes cidadãos durante o caos — normalmente saques e depredação de propriedades –, é no longo bloco do Algiers que essa primeira impressão muda por completo.

A bem da verdade, o filme vai ganhando peso aos poucos. Então nos acostumamos com a fotografia dessaturada, cheia de matizes marrons e próxima aos filmes políticos dos anos 70 de Barry Ackroy (Oscar por Guerra ao Terror, mas que também fez um trabalho incrível em Capitão Phillips e A Grande Aposta) que tem o enorme mérito de conseguir manter um aspecto visual vivo no filme mesmo praticamente toda a obra se passando em um grande bloco noturno, cuja chegada parece um pouco estranha para  espectador, esperando que a obra fosse caminhar de outro modo, levando em consideração o tratamento dado do primeiro ato; mas o roteiro sai do macro e vai para o micro espaço, inicialmente em um ambiente quase alienado, com festa, música, dramas pessoais, paqueras e uma brincadeira infantil que acaba por selar a vida dos hóspedes no anexo do Algiers Motel aquela noite.

Quando nos acostumamos com a passagem temática — não é um desvio de foco exatamente, mas uma mudança de representação e estrutura dos eventos — e vemos o nível de desumanidade dos policiais aos tratar as pessoas no hotel (duas garotas brancas e o restante, todos negros), entendemos não só que aquele era o ponto onde que a diretora queria chegar, mas também que ali estarão as principais críticas da película, estendidas para o longo e um tanto desnecessário terceiro ato, além dos melhores momento de atuações de toda a obra. Filmado em um espaço pequeno, onde a sensação de claustrofobia é muito bem criada e a dinâmica cênica do corredor para os quartos, daí para o exterior do hotel e então novamente para o corredor é realizada de maneira exemplar, vemos os hóspedes contra uma parede, sofrendo tortura física e psicológica enquanto os policiais “apenas faziam o seu serviço“. Esta sequência inteira é muito difícil de se assistir. E como estamos falando de atuações primorosas de todo o elenco, as situações se tornam ainda mais opressivas.

No campo das atuações, vale destacar o músico Larry (Algee Smith) e policial Krauss, interpretado de forma aplaudível por Will Poulter, que vive um homem racista, assassino e o tipo de indivíduo que gosta de se esconder atrás de uma máscara de “cidadão de bem”, defensor da lei, da moral e dos bons costumes, matando, torturando e agredindo desnecessariamente pessoas suspeitas, que não lhe oferece ameaça e que ele imediatamente assume que são criminosas. O tipo de indivíduo que quer fazer valer a sua vontade de “homem da lei”, de alguém que só estava cumprindo ordens superiores — o triunfo da banalidade do mal — e que na verdade estava fazendo o bem para aquelas pessoas, plantando provas e fazendo de tudo para inocentar os seus próprios crimes porque, afinal de contas, “os pretos não deviam ter mentido e obedecido a ordem policial, entregue a arma desde o início, e tudo teria ficado bem“. Logo, a culpa de tudo o que aconteceu no Algiers Motel, para Krauss e para os indivíduos que pensam como ele, é dos hóspedes. Um padrão de pensamento que é expandido pelo roteiro no desfecho do filme, mostrando que a justiça trilha exatamente esse tipo de caminho, especialmente em lugares socialmente viciados e historicamente pré-dispostos a inocentar os que estão do lado da “limpeza social”, não importando se essas mesmas pessoas também sejam criminosas.

Mesmo retratando um evento dos anos 60, onde a luta pelos direitos civis da população negra americana ia em alta, o conceito de forças repressivas do Estado vs. manifestações e tratamento de pessoas suspeitas (ou a atribuição imediata de culpa a determinados grupos sociais) ainda vive. A questão tem, evidentemente, os seus espinhos. Em situações assim, poucos são realmente inocentes. Manifestações podem conter criminosos, depredadores e todo tipo de indivíduo cuja intenção não era se manifestar. Da mesma forma que temos profissionais dentro das forças policiais que agem de maneira coerente em relação à posição de ocupam, utilizando de força apenas se necessário e jamais plantando provas ou forçando uma confissão apenas para ter algo para mostrar aos superiores e à imprensa. Mas… quanta ingenuidade achar que as coisas funcionam de maneira tão “harmônica” assim, não é mesmo? Aliás, esta é justamente a colocação que o roteiro faz, mostrando que culpados existem dos dois lados. Ameaças à vida existem dos dois lados. Mas a forma como isto se canaliza na resolução… bem, qualquer leitor que tenha tido acesso a meios de informação nos últimos anos sabe exatamente como [ainda] funciona.

Cheio de densas nuances políticas, lados sociais a considerar e muita proximidade com acontecimentos da atualidade (guardadas as proporções históricas) Detroit em Rebelião é um filme que nos deixa desconfortáveis e nos faz pensar bastante sobre os papeis de forças em conflito. É preciso ter um pouco de paciência para atravessar o final, mais longo do que deveria e com um pendor para o anticlímax, mas a crítica do roteiro e o excelente trabalho de direção, principalmente no Algiers Motel, não são pisoteados por esta camada a mais, que também tem seus méritos. A reflexão permanece e fica no ar um certo amargor ao percebermos a continuidade da mesma dinâmica social em nossos dias. Certas coisas ainda parecem ser tratadas como regra dentro de alguns cenários.

Detroit em Rebelião (Detroit) — EUA, 2017
Direção: Kathryn Bigelow
Roteiro: Mark Boal
Elenco: John Boyega, Will Poulter, Algee Smith, Jacob Latimore, Jason Mitchell, Hannah Murray, Jack Reynor, Kaitlyn Dever, Ben O’Toole, John Krasinski, Anthony Mackie, Nathan Davis Jr., Peyton ‘Alex’ Smith, Malcolm David Kelley, Joseph David-Jones, Laz Alonso
Duração: 143 min.

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